Título: Luz e água clandestinas: problema antigo e de difícil solução
Autor: Benevides, Carolina; Lins, Letícia
Fonte: O Globo, 31/10/2010, O País, p. 14

Brasil tem prejuízo de R$ 7,8 bilhões por ano por conta dos "gatos" de energia, comum a todas as regiões do país

RECIFE e RIO. O tal jeitinho brasileiro faz com que o país tenha um prejuízo de R$ 7,8 bilhões ao ano por causa do furto de energia, o famoso gato, comum a todas as regiões do Brasil. O dado, de 2009, é da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e só leva em consideração as perdas não-técnicas aquelas que são resultado de furtos e fraude na medição.

É um problema antigo, de difícil solução e que extrapola as barreiras do setor elétrico. Nada justifica roubar energia, mas o gato é também um problema social, e em algumas regiões é complicado combater as perdas.

Além disso, existe ainda quem resolva tirar vantagem e rouba estando consciente do que faz, o que é um componente agravante diz Romeu Donizete Rufino, diretor da Aneel.

De acordo com a Aneel, no ranking das dez companhias que mais têm perdas não-técnicas estão empresas do Sudeste, do Nordeste e do Norte. A Celpa, do Pará, encabeça a lista.

Perdemos ano passado R$ 432 milhões por conta dos gatos diz Luiz Fernando Arruda, superintendente corporativo de proteção da Receita da Celpa. São 300 mil consumidores ilegais e um milhão e 800 mil que pagam pela energia que consomem.

No Pará não existe só o gato que é fruto da miséria. Há também a fraude como negócio, com lojas, shoppings, restaurantes e mansões furtando energia.

Sem gato, conta menor

Segundo Jerson Kelman, presidente da Light, empresa que aparece em segundo no ranking da Aneel, o gato não causa prejuízo só para as companhias.

No Rio, o consumidor pagaria até 17% menos se todos os gatos deixassem de existir, e a empresa aumentaria o faturamento em R$ 1 bilhão e 400 milhões por ano.

Moradora do Rio das Pedras, na Zona Oeste, a doméstica Maria Lúcia Ribeiro, de 56 anos, não paga luz. Ela mora numa rua onde o emaranhado de fios já representa perigo para as crianças que brincam na calçada: Às vezes pega fogo, e como os fios são baixos, a bola bate e a gente fica com medo. Quando chove é raro não pegar fogo.

Em Pernambuco, o primeiro estado da Região Nordeste a universalizar o acesso à eletricidade, ainda em julho de 2009, há residências no agreste e no sertão que ainda não possuem energia.

Na Região Metropolitana é grande o número de ligações clandestinas, principalmente em favelas ou bairros populares.

Moradora de uma comunidade à margem do rio Capibaribe, próximo ao bairro Dois Irmãos, na Zona Norte de Recife, a doméstica M.N., de 40 anos, divide uma casa de três cômodos com seis pessoas. Quando se mudou, há cinco anos, ela descobriu que tinha herdado uma conta de R$ 379. Sem dinheiro para pagar, o marido de M. fez um gato. Segundo dados da Companhia Energética de Pernambuco (Celpe), que é privatizada, o consumo clandestino é responsável por 9% das perdas, o que correspondia a R$ 136 milhões por ano.

Márcia Foletto A CAMINHONEIRA Rita de Cassia de Lima, do Rio, se preocupa com a saúde MORADORAS DE Magé, no Rio, dona Mel e a filha Gabriela não têm água encanada ou luz depois das 17h Para minimizar o problema, a concessionária criou campanha alertando a população sobre os eletrotraficantes e mostrando que roubar energia é crime.

Furto de água: índices altos

Furto de água também é um problema nacional. Especialista em infraestrutura hídrica e professor da Universidade de Brasília, Demetrios Christofidis conta que mundialmente é aceitável que as companhias tenham perdas de até 20%. No Brasil, em todas as regiões, os índices são muito maiores. Segundo o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (Snis), em 2007, a Região Norte foi a que mais perdeu: 56,7%. No Nordeste, as perdas ficaram em 44%.

Podemos dizer que as perdas acima dos 20% são decorrência dos gatos de água. As perdas físicas, por vazamento, infiltração ou por conta de problemas na tubulação não ultrapassam esse índice explica Demetrios. E por conta disso, fica claro que nenhuma região do Brasil está livre do problema.

O Sul, que tem os melhores índices, perdeu 28% em 2007.

Para ele, o furto de água é também uma questão social: Muitas vezes, o valor da conta supera o que uma família pode pagar. Claro que existe gente que faz ligação clandestina para não arcar com o custo, mas temos um problema social. Muita gente não tem alternativa.

É o caso dos vizinhos de M., em Recife. Na comunidade, o gato foi feito nos canos da Companhia de Saneamento de Pernambuco (Compesa).

No estado, até 2006, 70% da p o p u l a ç ã o c o m acesso a abastecimento de água enfrentava algum tipo de racionamento.

No Rio, Maria Lúcia nem sabe de onde vem a água, mas diz que sem a torneira que não para de jorrar seria complicado tomar conta de Andrielle, uma bebê de 7 meses, e dos netos: Criança precisa tomar banho toda hora e não pode ficar sem comer. O abastecimento falhava muito aqui, a g o r a n ã o f a l t a mais.

Moradoras da Praia de Ipiranga, em Magé, dona Mel e a filha Gabriela não têm água corrente e a luz só funciona até as 17h, já que o gato, que abastece a comunidade, fica sobrecarregado a partir desse horário. Para conseguir água, contam com a ajuda da vizinha que paga R$ 30 por mês pela ligação clandestina.

A informalidade também faz com que as empresas de TV a cabo amarguem prejuízos. O Sindicato Nacional das Empresas Operadoras de Sistemas de Televisão por Assinatura (Seta) estima que o Brasil tenha 350 mil ligações clandestinas.

Ao todo, 30 milhões de brasileiros têm serviço de TV por assinatura.

As empresas perdem em média R$ 30 milhões por mês por conta desse furto de sinal diz Antônio Salles, diretor da Seta.

De acordo com Salles, o número de ligações clandestinas é ainda maior.

Nas regiões onde há milícia ou onde o tráfico domina, onde falta a presença do Estado, nós nem temos como estimar o número de gatos.

Acreditamos que um milhão de usuários faz uso de sinal ilegal diz Salles, lembrando que a digitalização vai contribuir para que o número diminua: Mas isso não basta. Não podemos esquecer que a pirataria não dá trégua.

A briga sempre vai existir.