Título: Vidas construídas sob um teto sem chão
Autor: Duarte, Alessandra
Fonte: O Globo, 31/10/2010, O País, p. 16

País tem de 13 milhões a 15 milhões de domicílios irregulares, sem legalização do título de propriedade

No Sítio da Amizade, é assim: você mesmo recolhe por aí umas tábuas de madeira, compensado ou placas de metal, e monta as paredes e o teto do seu barraco. Ou então dá sorte de conhecer alguém que esteja deixando um barraco já montado por lá, e entra na vaga. Para lavar louça e roupa, é descer a ladeira de barro do lugar e ir a um dos três tanques instalados na beira de um valão que fica na entrada.

Quase 400 famílias têm esse cotidiano nessa favela na Cidade de Deus, quase margeando a Estrada do Gabinal, na Zona Oeste região do Rio com bairros que, entre 1999 e 2008, tiveram aumento de mais de 20% da área ocupada por favelas. As casas do Sítio estão entre os 13 milhões a 15 milhões estimados pelo Ministério das Cidades como o número de domicílios no país com irregularidade fundiária. Ou seja, sem legalização de nenhum tipo de título de propriedade.

Muitos dos que vivem nessas moradias informais bem gostariam da formalidade da alvenaria e do asfalto. Mas como pagar aluguel se Daniela Emanuela Alves, por exemplo, uma das moradoras do Sítio da Amizade, cria três filhos com R$ 90 por mês? Não dá responde Daniela, que, viúva de um marido que morreu porque foi para a vida errada, não tem como trabalhar por precisar cuidar das crianças.

Os R$ 90, ela recebe do Bolsa Família.

Desde abril, quando teve aquela chuva forte (que levou ao desabamento do Morro do Bumba, em Niterói), uma árvore ficou escorada aqui no teto.

Vizinhos dela, os sete netos de Wanda de Oliveira moram num barraco que, também em abril, empenou para um lado. Enquanto a filha trabalha, Wanda cuida deles. Não sem algum esforço, contou terça-feira passada: Hoje o almoço deles foi só arroz

Urbanização sem regularização

O déficit habitacional no país é calculado em 5,8 milhões de domicílios, segundo o Ministério das Cidades; desses, 82% estão em áreas urbanas. É o que falta de casa no país. Já a quantidade de domicílios já existentes, mas ilegais, é difícil de ser calculada, pelo fato de que a condição da moradia própria, alugada ou outra, como traz o questionário do IBGE é informada pelo próprio morador, e, aí, há quem esconda a condição irregular. Para se ter ideia do tamanho dessa subnotificação, enquanto nas cidades com mais de cem mil habitantes, 87% delas têm favelas e 92,5%, loteamentos irregulares, apenas em torno de 1,8 milhão de pessoas no país responderam a opção outra ao falarem da condição da moradia ao IBGE.

A estimativa do Ministério das Cidades, de 13 milhões a 15 milhões de domicílios com irregularidade fundiária, baseia-se em outras irregularidades geralmente presentes em casas com ilegalidade fundiária, diz Celso Carvalho, secretário nacional de Programas Urbanos do ministério: Vimos quatro fatores: água, esgoto, luz e pavimentação. Se o domicílio não tem pelo menos dois desses itens, é praticamente certo que a pessoa mora sem escritura ou aluguel legalizado.

Atualmente, o programa federal de regularização fundiária Papel Passado acompanha processos de regularização em 3.002 assentamentos irregulares (favelas ou loteamentos) de 448 cidades.

Carvalho explica os números modestos, se comparados com o tamanho do problema da moradia no país afirmando que a regularização fundiária urbana demorou a ser regulamentada e é processo mais recente do que a urbanização de favelas, que em muitos casos acontece sem a legalização da propriedade.

Qual o mais conhecido programa de urbanização de favela no país? O Favela-Bairro do Rio.

Não deu um título de propriedade.

Foi obra cita Carvalho.

Regularização fundiária não é só a escritura. É ela, que é regularização jurídica, e também é a regularização urbanística, que é, por exemplo, fazer arruamento.

Mas por muito tempo faziam uma sem outra completa Renato Balbim, da Diretoria de Estudos e Políticas Regionais, Urbanas e Ambientais do Ipea.

O Estatuto das Cidades, que ajuda a regular a área, veio só em 2001 enquanto a lei nacional de regulamentação fundiária (a 11.977), que deu o marco legal para o setor, chegou apenas ano passado (trazendo o programa Minha Casa Minha Vida).

Também é recente, de 2007, a lei 11.481, que passou a permitir que títulos de concessão de uso, e não só os de propriedade, pudessem ser dados como garantia para acesso a crédito, além de permitir que se venda o imóvel mesmo com esse título de uso.

A habitação popular não precisa ser necessariamente pela propriedade. No Canadá, por exemplo, referência em projetos de habitação social, há cooperativas habitacionais em que os moradores são sócios, não proprietários diz Carlos Vainer, professor titular do Instituto de Planejamento Urbano da UFRJ.

A possibilidade de acesso a crédito e de venda do imóvel pode ainda melhorar a renda dessas famílias. Estudo famoso do economista peruano Hernando de Soto, por exemplo, já indicava que o fato de se ter um título de propriedade traz aumento de renda para quem o tem, pela possibilidade da venda daquilo.

No Rio, a ligação entre título de propriedade e renda foi vista por um estudo de 2008 da pesquisadora Maria Isabel de Toledo Andrade, em tese de doutorado pela UFRJ sobre a Quinta do Caju primeira comunidade do Rio a passar por regularização fundiária, a partir de 2005. O estudo concluiu que a posse do título fez com que a renda domiciliar per capita aumentasse de 18% a 27% nos domicílios beneficiados pela regularização.

Hoje, porém, o processo de regularização na Quinta do Caju está parado. Iraydes Pinheiro Henriques, antiga presidente da associação de moradores da comunidade, afirma que, este ano, nenhum morador recebeu título.

Até agora, desde que começou a regularização, das cerca de 860 famílias, só 200 ganharam a escritura; mesmo assim, valendo para o terreno, não para o imóvel, reclama Iraydes.

Sylette Paiva é uma das que esperam a escritura. Na Quinta do Caju há 53 anos, ela mora numa casa em que a estrutura de ferro do teto é mais que aparente: está se soltando. Quando chove, chove dentro de casa: Sem a escritura, não é meu, não posso fazer obra.

Outro caminho para enfrentar irregularidade fundiária e déficit habitacional é a integração de projetos habitacionais e transporte, sublinha Carlos Vainer: No Rio, por exemplo, temos uma cidade fraturada, com projetos de interesse social na periferia sem sistema de transporte público adequado e longe dos serviços, escolas... E o Minha Casa, Minha Vida repete isso.

Exemplo do que fala Vainer é a Cidade de Deus. Conjunto construído em 1960 para abrigar moradores removidos de favelas de outras áreas, ela hoje já tem suas próprias favelas como o Sítio da Amizade. Que tem moradores em processo de remoção pela prefeitura para um conjunto em Cosmos, a mais de 50 quilômetros do Centro do Rio, enquanto a Cidade de Deus fica a cerca de 27 quilômetros.

Wanda de Oliveira está entre os que já conseguiram casa em Cosmos; apesar do processo de remoção ter começado há mais de dois anos, só 18 famílias do Sítio entraram nele até agora.

Mesmo assim, boa parte quer se mudar, mas não para lá, diz Wanda, e resume o porquê: É longe, viu? É difícil.