Título: O diretor de cadeia que teve Dilma como aliada
Autor: Lima, Maria
Fonte: O Globo, 31/10/2010, O País, p. 30

"Bom baiano" autorizou curso pré-vestibular para detentos em presídio gaúcho; recém-saída da prisão, atual candidata petista dirigia o projeto

Presídio Central de Porto Alegre, 15 de março de 1972.

Waldomiro Jesuíno da Silva cruza pela primeira vez os portões da cadeia na condição de diretor. Escolhido de uma lista tríplice, nada entendia do assunto, mas carregava a certeza de que só podia trabalhar com gente que gostasse de gente. E ele se sentia assim.

Em três anos, Waldomiro fez história no presídio, a ponto de ser chamado pelos presos políticos de Bom Baiano.

Uma das suas maiores obras foi instituir uma escola supletiva para os presos comuns, aproveitando-se do saber dos inimigos do regime que encarcerava.

Como outras atitudes, não teve o menor receio de confiar a direção da escolinha a uma ex-guerrilheira, a essa altura já solta. Hoje, aos 84 anos, acha graça ao saber que a professora dos presos chamavase Dilma Rousseff.

Os anos de chumbo, período mais violento da ditadura militar, chegavam ao auge quando Waldomiro assumiu o Presídio Central. O Exército acabava de descobrir um foco guerrilheiro no Araguaia e a Anistia Internacional preparava um relatório denunciando a existência de mais de mil torturados no Brasil. Para os presos políticos, uma mudança no comando sempre gerava dúvidas e inquietações. Em pouco tempo, Bom Baiano os convenceu de que não havia nada a temer.

O que cada um fez lá fora não me interessava. Procurei tratar a todos bem. O sistema penitenciário é para proporcionar ao preso uma terapia penal recorda-se.

No Presídio Central, os inimigos do regime viraram aliados da administração. Waldomiro se valeu dos vários conhecimentos deles engenheiros, professores, profissionais de saúde, entre outros para implementar melhorias na cadeia. Até sair, em abril de 1975, o diretor conseguiu construir uma quadra de esportes, montar uma biblioteca, reformar as instalações elétricas e oferecer estudos aos presos interessados, inclusive cursinho prearatório para o vestibular gaúcho.

Comuns ou políticos, os presos não demoraram a perceber que algo novo acontecia no Presídio Central. Logo que assumiu, Waldomiro foi aconselhado pelos agentes penitenciários a cancelar uma festa de Dia das Mães que estava próxima, já que não conhecia o lugar nem tinha experiência no assunto.

Mas o diretor a manteve e ainda contrariou os funcionários ao se recusar a entrar no auditório pela porta dos fundos, como faziam os antecessores por uma questão de segurança: Entrei pelo meio do salão, cruzando pelos presos, e ainda levei o meu filho junto.

Waldomiro nunca esteve com Dilma no presídio, mas se considera até hoje grande amigo do advogado Carlos Araújo, na época marido dela e pai da única filha da candidata petista. E é Araújo, um dos presos políticos mais importantes que passarem por lá nos anos 1970, quem conta o que representou Bom Baiano para a população carcerária em tempos tão difíceis, quando o regime radicalizado mostrava as garras: Era um baiano de alma grande. Amado por todos os presos. Tratava todo mundo com muito afeto. Era muito cortês, muito especial. Cuidava da gente como filhos. Ele deve ter salvo muita gente. Não permitia que abusassem dos presos. Tinha sempre uma mensagem de otimismo, fé e carinho. Ficamos amigos para o resto da vida.

Araújo, que conhecera Dilma na VAR-Palmares, uma das principais organizações da luta armada do período, chegou ao Presídio Central em 1973, transferido da Ilha da Pólvora, para acabar de cumprir a pena.

Na época, Dilma já morava em Porto Alegre. Ela havia saído do Presídio Tiradentes (SP) no fim de 1972 e passou a morar com os pais do companheiro, visitando Araújo regularmente.

Teve um aspecto interessante na cadeia: o diretor me outorgou poderes na cadeia. E aí eu queria fazer alguma coisa pelos presos, organizar a cadeia.

No tempo em que estive lá, não houve uma fuga, uma morte, uma briga. Nada diz Araújo.

O diretor nunca usou expressões como interno ou preso para se referir à população carcerária.

Preferia chamá-los de reeducandos. Por considerar o crime político um crime de ideias, apartou os presos dessa categoria dos comuns, criando um alojamento próprio, onde eles faziam a sua comida.

Quando autorizado por Waldomiro a organizar o curso pré-vestibular, Araújo pediu a Dilma para recrutar os professores, que davam aula de graça.

Ela acabou assumindo a direção do projeto.

E aí foi interessante porque demos cursos bons, vários passaram no vestibular.

Dilma dava aula de matemática.

Sabia muito, era muito rigorosa, como em tudo na vida, É do temperamento dela.

Amigo do casal e também preso político, Carlos Alberto Tejera de Ré, o Minhoca, de 59 anos, cuidou, no Presídio Central, da organização da biblioteca.

Autorizado pelo diretor, ele escreveu para várias editoras pedindo doações: Até a dona do bordel mais famoso da época, a Marly, nos mandou duas enciclopédias Barsa, que eram caríssimas lembra.

Com a Secretaria de Educação, o presídio conseguiu carteiras para a biblioteca. Como um dos presos era sobrinho de um poderoso empresário gaúcho do setor de metalurgia, convenceu o tio a doar material de obra para a construção da quadra esportiva.

Assim, a cadeia foi mudando aos poucos.

Hoje, 35 anos após a saída de Waldomiro, o Presídio Central não é nem sombra daqueles tempos. Alguns dos ex-presos políticos agora fazem parte da elite dirigente do estado.

Só restaram os presos comuns num lugar que, com capacidade para pouco mais de 2 mil pessoas, abriga mais de 5 mil.

A situação atual é trágica.

O Presídio Central é a pior cadeia da América Latina. Há lugares ali que nem a polícia ousa entrar. Recentemente, a Justiça proibiu que se envie novos presos para lá lamenta Jair Krischke, do Movimento de Justiça e Direitos Humanos do Rio Grande do Sul.

Era um baiano de alma grande. Amado por todos os presos.

Ficamos amigos para o resto da vida

Carlos Araújo, ex-preso e exmarido de Dilma

Até a dona do bordel mais famoso da época nos mandou duas enciclopédias Barsa, que eram caríssimas

Carlos Tejera, ex-preso político

A JOVEM DILMA na época em que foi presa na ditadura: aulas de matemática