Título: Farda contra turbante
Autor: Queiroz, Silvio
Fonte: Correio Braziliense, 11/07/2009, Mundo, p. 24

Militares dominam protestos, consolidam posição de força no regime islâmico e causam inquietação no clero xiita

O aiatolá Ali Khamenei, líder religioso supremo do Irã, subjugou as ruas mas se afastou dos seminários. A repressão decidida às multidões que ensaiaram um levante contra a reeleição do presidente Mahmud Ahmadinejad impediu que os protestos saíssem de controle ¿ como aconteceu há 30 anos, quando a hesitação do xá Reza Pahlevi abriu as avenidas para a Revolução Islâmica. Mais do que Khamenei e Ahmadinejad, saiu vitoriosa a Guarda Revolucionária e seus braços paramilitares, como a milícia Basij. E a emergência de uma elite militar para o centro de poder da República Islâmica não escapou à atenção dos teólogos de Qom, a cidade sagrada que abriga as escolas teológicas do xiismo iraniano. Lá, como nos corredores do Majlis (Parlamento), fermenta inquietação quanto aos rumos do regime que o establishment religioso levou ao poder em 1979.

Foram numerosas as manifestações individuais de aiatolás, alguns com enorme prestígio, como o venerado octogenário Hossein Ali Montazeri, que por 10 anos foi o sucessor designado do fundador do regime, o aiatolá Khomeini ¿ até ser deserdado como excessivamente crítico. Mais representativo e sintomático, porém, foi um manifesto divulgado pela Assembleia dos Estudiosos e Pesquisadores dos Seminários de Qom. A organização, ligada à corrente reformista do clero, questiona frontalmente o segundo mandato de Ahmadinejad, a despeito das bênçãos de Khamenei e do Conselho dos Guardiões, órgão supervisor dos processos eleitorais. ¿Como podemos aceitar a legitimidade de uma eleição só porque o conselho diz que assim é? Um governo nascido de infrações pode ser considerado legítimo?¿, questiona o texto.

A noção de que o Irã evolui de uma república teocrática para uma espécie de autocracia militarizada não é nova para observadores e mesmo diplomatas em missão no país. Muito veem o marco inicial do processo justamente na escolha do atual líder religioso para suceder Khomeini, morto em 1989. Khamenei, premiado pela lealdade, mal reunia credenciais religiosas para ser promovido a aiatolá ¿ título que recebeu em boa parte para legitimar-se diante do incomparável prestígio de Montazeri. Mas, na qualidade de ex-presidente, conhecia a máquina estatal e entendia o lugar central ocupado pelos militares, mais ainda depois da guerra contra o Iraque de Saddam Hussein (1980-1988).

Nos 20 anos sob a liderança de Khamenei, a Guarda Revolucionária viu seu orçamento saltar para a cada dos bilhões de dólares anuais. Seu arsenal incorpora as últimas novidades da indústria bélica iraniana, que movimenta contratos de vulto e está sob administração de antigos oficiais da guarda. A ideia de vários analistas, segundo a qual a República Islâmica passa por uma espécie de golpe militar silencioso e progressivo, é reforçada pelas declarações do próprio comandante do corpo de elite, general Mohammad Ali Jafari: ¿Os últimos acontecimentos nos empurraram a uma nova fase da revolução¿, disse o oficial, referindo-se à convocação, feita pelo líder, para que os pasdaran (guardas) controlassem a situação criada pelos protestos. ¿Temos de entender a completa dimensão disso¿, completou.

Encruzilhada ¿O modelo iraniano de teocracia fracassou, e o país se precipita em direção a uma ditadura militar¿, é o duro diagnóstico de Mohsen Kadivar, um dos teólogos reformistas mais respeitados, além das fronteiras do Irã. Kadivar, que integrou o núcleo intelectual das reformas ensaiadas na presidência de Mohammad Khatami (1997-2001), pagou pela ousadia com dois anos de prisão e hoje está em autoexílio, lecionando na Universidade Duke, nos Estados Unidos. Falando à revista alemã Der Spiegel, o ¿intelectual religioso¿, como é chamada no Irã essa classe de eruditos xiitas, censura sem meias-palavras o líder religioso e o presidente ¿ e a crítica mais leve é a de terem desvirtuado a natureza de seus cargos em favor da facção conservadora do clero e, mais ainda, do establishment militar.

¿Ahmadinejad se comporta como uma espécie de talibã iraniano¿, acusa, comparando o presidente reeleito aos extremistas religiosos dos vizinhos Paquistão e Afeganistão. ¿E o líder supremo atrelou seu destino ao do presidente, o que constitui um grande erro não apenas moral, mas também político¿, sentencia Kadivar.

Guarda pretoriana

Foi nos momentos críticos da revolução, quando o terror atentavam contra a cúpula do novo regime e Saddam Hussein invadia o Irã, que nasceu um corpo militar leal até a medula ao aiatolá Khomeini. Os pasdaran (guardas revolucionários) saíram da guerra, em 1988, como pilar da República Islâmica. Hoje são 125 mil combatentes, armados com o que o país tem de mais moderno. Seus veteranos estão em postos chave, começando pelo presidente Mahmud Ahmadinejad e pelo presidente do Parlamento, Ali Larijani.

Sob censura do G-8

As potências que integram o G-8 estão ¿profundamente incomodadas¿ com o programa nuclear iraquiano, de acordo com o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama. No último dia da cúpula entre os líderes dos sete países mais desenvolvidos e da Rússia, na Itália, a declaração conjunta pediu que Teerã cumpra as resoluções das Nações Unidas e pare com as atividades de enriquecimento de urânio, processo que pode ser usado para a construção de uma bomba atômica. O Irã insiste que seu programa tem fins exclusivamente civis.

Obama destacou que a reunião não tinha por objetivo estabelecer sanções contra o Irã. O objetivo era, entre outras resoluções, divulgar uma declaração que condenasse a repressão aos manifestantes que saíram às ruas de Teerã para protestar contra a reeleição do presidente Mahmud Ahmadinejad. O documento classifica como ¿inaceitáveis¿a prisão de estrangeiros e as restrições impostas à mídia. Recentemente, o regime islâmico libertou oito dos nove funcionários da embaixada britânica que haviam sido presos e acusados de espionagem durante os protestos. No entanto, um cidadão britânico e uma professora francesa continuam detidos .

Os líderes do G-8, na declaração, garantem que se o Irã não mudar a postura desafiadora sobre seu programa nuclear até setembro, será precisaremos ¿dar novos passos¿. O presidente norte-americano garantiu que os países não vão ¿esperar indefinidamente¿ pela mudança de atitude por parte de Ahmadinejad.

O prazo dado ao Irã coincide com a data da próxima reunião do G-20, em Pittsburgh, nos Estados Unidos. Nesse encontro, os líderes vão avaliar se o regime islâmico cumpriu as exigências da ONU. O presidente da França, Nicolas Sarkozy, afirmou que ¿entre agosto e setembro eles devem decidir como querem que as coisas evoluam¿. Barack Obama assegurou que a declaração do G-8 ¿abriu uma porta que permite ao Irã diminuir as tensões e se integrar (à comunidade internacioal)¿, mas que ¿se decidirem não entrar por essa porta, o G-8 pode começar a agir.¿ A cúpula na Itália abordou, entre outros, o tema da redução dos arsenais nucleares, tomando como exemplo o acordo fechado no início da semana entre os Estados Unidos e a Rússia.