Título: Política de aluguel
Autor: Delgado , Paulo
Fonte: O Globo, 28/11/2010, Opinião, p. 7
Imagine 28 possibilidades de cardápio para o almoço na cabeça de uma cozinheira. Vinte oito nomes de batismo para um filho. Ou quase três dezenas de diagnósticos brotarem da junta médica. Não haverá almoço; o nome do rebento acabará sorteado; o paciente morrerá depois de ser operado do que não tem. Não é normal! Ou existem 28 maneiras diferentes para se governar o Brasil?
Por que é possível tolerar quase três dezenas de partidos capazes de eleger para o Congresso arremedos de bancadas? A política sem o sentido de ordem é cobiçada pelo mundo feudal da representação de interesses particulares dos que compram mandatos. Enquanto isso os partidos políticos "cuidam de si", estimulando a dissociação entre eleição, um episódio monetário, e ação política, um problema contornável de gestão de ambições. Assim, acumulam perícia para a autossobrevivência.
Os principais mecanismos que nos levaram a esse estado de coisas têm farta contribuição da Justiça, que em decisões erráticas impede a mudança do quadro atual. Férrea visão de tribunais superiores que consideram inconstitucional exigir que um partido tenha um número mínimo de votos (5%) para existir e ser nacional. Na prática, tornou-se irrelevante o principio da quantidade de votos para ter representação. Viramos o paraíso legal da legenda de aluguel.
Da mesma maneira, o presidencialismo de cooptação fez da adesão, por medo de desestabilização parlamentar, critério mais importante para formar um governo do que a capacidade técnica - ou política, evidentemente - do convidado para o exercício da função.
No Legislativo, é um escândalo predominar o compadrismo que impede dar racionalidade ao quadro partidário. Até destruir os partidos relevantes que a democracia conseguiu formar nos últimos anos e substituí-los por caricata plutocracia parlamentar.
Coligação proporcional, não exigência mínima de votos para existir e compra de votos são a cara da bagunça partidária e eleitoral e seu balaio de gatos, artistas, atletas, religiosos, ratos e... até políticos por vocação. Verdadeira sopa de legendas se apresenta ao eleitor como partido único, engenharia construída pelas direções partidárias em busca de tempo de televisão para campanhas majoritárias. Mãe da ficção do partido sem eleitor, tal aberração dá vida a mais de duas dezenas de legendas em fricção no Congresso. Atrás de três coisas principais: participar do milionário fundo partidário, vender o horário eleitoral gratuito e ajudar a produzir crises artificiais para arrancar concessões reais do governo.
Os inconvenientes da tolerância à abundância de erros são maiores do que os da injustiça e da miséria. O sistema partidário com sua resistência à mudança é a fina flor da conivência com as mazelas do país.
O que pode, em situações de crise, bloquear o recurso à política colocando em risco a legitimidade da democracia. Fazer-se importante é o ardil da má política; a boa política como representação de interesses gerais aceita ser relativamente importante. Uma combinação de cegueira institucional, dispersão do foco de atenção sobre problemas reais e apego obstinado ao status quo entre as elites do Estado mantém a diversidade partidária como sinônimo de vitalidade democrática quando não passa de caos instrumentalizado.
Para o cidadão na vida real não há mais valores na política. Isso constitui um princípio desastroso para as relações humanas e o progresso. Um símbolo de prestígio que vira símbolo de estigma passa rapidamente de atividade desacreditada para desacreditável e atrai para ela pessoas indiferentes à reputação. Salvá-la do estigma e do descrédito é dever dos partidos políticos reais e essencial contribuição ao novo governo que se inicia com esperança.