Título: O Estado fracassado da América
Autor: Summa , Renata
Fonte: O Globo, 28/11/2010, O Mundo, p. 47

Uma barraca que substitui o palácio presidencial em escombros deve em breve acolher um novo chefe de Estado. Símbolo máximo de um país em ruínas desde o terremoto que devastou o Haiti em janeiro, a precária sede do governo será ocupada por um presidente que os haitianos escolherão hoje nas eleições gerais. Junto com o abrigo provisório, o novo presidente herdará uma nação onde 80% das pessoas vivem abaixo da linha de pobreza, apenas um terço da população ativa tem trabalho formal e o governo tem pouco - ou nenhum - poder para resolver a maioria dos problemas.

- O Haiti é um Estado fracassado - diz Jean-Germain Gros, professor da Universidade de Missouri, em referência ao termo usado para designar países como Somália e Afeganistão, onde o governo não tem poder sobre funções vitais do Estado. - Nós chamamos o país de República das ONGs: há mais de dez mil delas no Haiti. O mundo escolheu canalizar a ajuda ao Haiti por essas organizações, enfraquecendo ainda mais o Estado.

Dados do Banco Mundial apontam o Haiti como o campeão mundial no número de ONGs per capita. Elas seriam responsáveis por prover 80% de todos os serviços sociais, e deverão receber 70% do total de US$10 bilhões de doações prometidos ao país desde o terremoto, segundo a consultoria Academia Nacional de Administração Pública. Além disso, segundo o site Disaster Accountability Project, cerca de metade do montante arrecadado pelas ONGs após a catástrofe não foi gasta, num país onde 1,3 milhão de pessoas continuam desalojadas, e as precárias condições sanitárias favoreceram a disseminação da epidemia de cólera.

- Antes do terremoto, o Haiti era o país mais pobre do continente, e continua sendo. Era um Estado fracassado, e continha sendo. A situação só piorou. Com o novo governo, é preciso que a comunidade internacional repense sua maneira de cooperar. Nessa questão, aprecio a abordagem brasileira: o presidente Lula canalizou a ajuda ao Estado haitiano - diz Gros.

Diante da miséria e da inação, não é surpreendente que o clima no país antes das eleições fosse de frustração. Analistas preveem uma taxa de abstenção nas urnas de 60%, por inúmeras questões: falta de documentação, dificuldade de deslocamentos internos, epidemia de cólera e até mesmo apatia. Julia Schünemann, pesquisadora do centro de estudos Fride, lembra que todos esses problemas são decorrentes do terremoto.

- Embora o país estivesse em más condições antes, havia uma percepção de que as coisas estavam melhorando. Logo após a catástrofe, havia esperança de que as pessoas se uniriam para promover mudanças. Agora, a esperança acabou, e percebo que há muita frustração.

O maior temor dos organizadores das eleições e da comunidade internacional é que essa frustração se transforme justamente em violência após a votação, num cenário largamente conhecido no país, mas que poderia ter consequências ainda mais dramáticas face a instituições extremamente debilitadas.

- Há um grande risco de a coisa degenerar. Os haitianos com quem converso acreditam que há grande risco de violência. Estas eleições estavam previstas, mas elas vêm em péssima hora para o país - diz Julia.

Prostituição e falta de moradia

A estudante de Administração Christelle Lacombe, de 23 anos, no entanto, mostra-se otimista em relação à votação. Apesar de ter perdido uma prima e diversos amigos no terremoto, além de se entristecer a cada vez que passa em zonas turísticas hoje transformadas em "vilarejos de barracas", Christelle reúne forças para tentar convencer sua família e amigos a votar.

- Tento dizer para que não deixem alguém escolher no lugar deles. Minhas expectativas em torno do novo presidente são muito altas, pois a situação está muito complicada - diz a estudante. - Depois do terremoto, vemos muita prostituição, pois as pessoas não têm mais onde trabalhar, o que comer.

Esse é apenas um dos muitos problemas que o novo - ou nova - presidente terá de resolver. O Haiti pode eleger pela primeira vez uma mulher à Presidência, caso a vantagem apontada pelas pesquisas, de Mirlande Manigat sobre Jude Celestin - candidato apoiado pelo presidente René Préval - se confirme. Para Julia Schünemann, a questão mais prioritária para o próximo presidente parece evidente.

- É preciso dar moradia às pessoas vivendo em barracas. De início, a situação deveria ser temporária, mas hoje esses acampamentos estão se tornando novas favelas.