Título: Desvio de rota
Autor: Berro, Oscar
Fonte: O Globo, 29/11/2010, Opinião, p. 7

A questão da regulação de leitos de CTI vem ocupando nos últimos dias espaço privilegiado na mídia. Um dos principais destaques foi o recorde negativo registrado em setembro com 200 pacientes aguardando por uma vaga em CTI na rede pública do Rio de Janeiro. Tal fato, infelizmente, não é uma novidade. A falta de Saúde sempre foi notícia. Hoje são os leitos de CTI, ontem foram as emergências superlotadas, amanhã será a dengue.

Em comum às citadas situações encontra-se o desvio de rota do modelo do SUS, preconizado na Constituição de 1988, que deixou de priorizar a atenção básica e optou pelo viés "hospitalocêntrico". Grande erro. Afinal, nunca o "ente" hospital - pela sua própria natureza assistencial - terá condições de atuar na prevenção plena. Hospital se distancia desta área por ter características emergenciais ou de alta complexidade, sendo acionado lá no final da ponta do processo, quando todas as opções esgotaram-se. Hospital não trabalha com saúde, mas com doença.

Saúde é, acima de tudo, prevenir para depois, se necessário, tratar. Com esta lógica o sistema não tem como não dar certo. E o caminho é, cada vez mais, investir na atenção básica. Universalizar esta prática garante ótimos resultados. Isto porque, dos males que afligem a população, havendo cobertura universal de atenção básica, 80% serão tratados neste nível, outros 15% serão referenciados para cuidados especializados e apenas 5% representarão a real necessidade de atendimento hospitalar.

Num passado recente, esta questão dos leitos de CTIs traria uma inevitável troca de acusações entre as várias esferas do SUS, cada uma eximindo-se de suas responsabilidades e consequentemente responsabilizando as outras. Hoje, não. A saúde do Rio vive um especial momento em que os três entes públicos falam a mesma língua e compreendem que o modelo tem que ser compartilhado. Neste espírito, os três gestores estão trabalhando para implementar os Territórios Integrados de Atenção à Saúde (Teias), onde os serviços assistenciais hospitalares estão articulados entre si e com as equipes de Saúde da Família, UPAs e Samu.

Mas será que isso basta?

Em recente pesquisa, o IBGE revelou que, em 2008, 56% dos domicílios ainda não eram atendidos por rede de esgoto. Esta situação, a falta de saneamento básico, inevitavelmente acarreta uma série de doenças, como a dengue, a esquistossomose e a hepatite.

Outro dado preocupante, também revelado por pesquisa do IBGE, constatou que quase a metade da população (49%) está acima do peso, e obesidade é sinônimo de diabetes, hipertensão e doenças cardiovasculares. Sedentarismo e queda na qualidade da alimentação, com a proliferação de fast-food e o consumo de industrializados, são os principais responsáveis.

Ainda temos que conviver com uma indústria tabagista que abastece quase 25 milhões de brasileiros fumantes com 15 anos ou mais. É sempre bom lembrar que o tabagismo está ligado a 50 tipos de doenças, como câncer de pulmão, de boca e de faringe, além de problemas cardíacos. Segundo a OMS, ele é uma das principais causas de morte evitável.

Essas situações demonstram que mesmo um sistema forte não é o suficiente para garantir a saúde do cidadão. Na verdade, nos dias de hoje, o caráter preventivo da saúde e o próprio conceito de atenção primária se estendem bem além das fronteiras sanitárias reconhecidas.

É uma questão complexa e demanda reflexão maior. No caso específico dos leitos de CTIs, no "aqui e agora", faz-se urgente o investimento pesado na abertura de novos leitos especiais, não se esquecendo que novos leitos também são sinônimo de profissionais especializados. As três esferas já anunciaram, individualmente, que até o fim do próximo ano pretendem duplicar o quantitativo atual de leitos. Já é um bom início, ainda mais se considerarmos uma participação mais efetiva da rede privada de saúde.

Agora, mais importante que o aumento da oferta dos leitos de CTIs, é o retorno ao modelo do SUS, daquele que começou a ser desenhado no final da década de 60, em que a prevenção era a palavra de ordem. Isso demanda certo tempo. Quando alcançado, certamente não precisará existir fila de espera para CTI.

OSCAR BERRO é diretor da Rede Hospitalar Federal no Rio de Janeiro e sanitarista da Fundação Oswaldo Cruz.