Título: Eleição em tempos de cólera
Autor: Farah, Tatiana
Fonte: O Globo, 27/11/2010, O Mundo, p. 55

Tensão marca pleito em que Haiti escolherá entre ex-primeira-dama, cantor e genro do presidente

A suspeita de que o cólera, que já matou 1,6 mil pessoas, tenha sido disseminado por uma das tropas internacionais, a nepalesa, tensionou ainda mais a relação entre os haitianos e a Minustah, a força de paz da ONU formada por 9.840 homens, 2,2 mil deles brasileiros. Será em meio a essa tensão que as tropas farão o patrulhamento amanhã, durante as eleições presidenciais e legislativas.

- De certa forma, isso foi explorado por alguns candidatos, que usaram o caso para dizer "fora Minustah, fora estrangeiros", mas não teve um "fora brasileiros" especificamente - contou ao GLOBO o coronel Carlos Aversa, do comando brasileiro no Haiti.

Segundo Aversa, amanhã, todas as tropas brasileiras estarão nas ruas para dar suporte às eleições em Porto Príncipe, capital do país, e em mais três cidades. Depois dos protestos durante a semana, o clima ontem era de tranquilidade. Apesar disso, muitos ainda não sabiam onde iriam votar.

Arrasado desde o terremoto de janeiro, quando 250 mil pessoas morreram, o Haiti teme que suas eleições sejam marcadas pela fraude, já denunciadas por alguns dos 18 candidatos à Presidência. Entre tantos nomes, pelo menos quatro têm chances de vitória: o candidato governista Jude Célestin, o cantor popular Michel Joseph Martelly, a ex-primeira-dama Mirlande Manigat e o industrial Charles Baker.

Candidata critica a Minustah

Ontem, último dia de campanha, os candidatos concentraram esforços na capital. Com uma posição crítica em relação às forças de paz, Mirlande Manigat aparece em primeiro lugar nas pesquisas, com 30% das intenções de voto. Num país em que metade da população vive com menos de US$1 por dia, Manigat promete acabar com a corrupção na administração pública.

- Esta eleição não é importante para mim. Ela é importante para o país. Os haitianos querem mudança, uma ruptura com o passado - disse.

Aos 70 anos, com a fala calma, Manigat é uma ex-reitora universitária que estudou na Sorbonne e que foi primeira-dama quando o marido, Leslie Manigat, ocupou a Presidência, em 1988. Deposto num golpe de Estado, ele seguiu para o exílio por dois anos, acompanhado pela esposa. Agora, ela quer ser a primeira mulher eleita para a Presidência.

- A Minustah é um corpo militar estrangeiro. É contra a Constituição. A presença de uma força militar estrangeira, mesmo multilateral, não é normal - afirmou à CNN.

Célestin é o seu principal concorrente e aparece com 22% das intenções de voto. Não só é o candidato do presidente, mas também noivo de sua filha. E, numa de suas promessas mais polêmicas, disse que se for eleito receberia o ex-presidente Bertrand Aristide - deposto e vivendo no exílio na África do Sul - de volta, assim como o general Raoul Cedras, que liderou o golpe de 1991 contra Aristide e que vive no Panamá, e o ex-ditador Jean-Claude Duvalier, o Baby Doc, que manifestou o desejo de voltar da França.

Em terceiro, com 14%, aparece Michel Martelly, cantor mais conhecido como "Sweet Micky", que promete "combater o sistema". Ele afirma que o governo tentará fraudar as eleições. "Nossa gente ainda bebe água suja. Eu poderia ter me mudado para os Estados Unidos ou viver aqui com os meus olhos fechados", disse ao "Washington Post". "Recebemos dinheiro dos americanos por 20 ou 30 anos, e as coisas só pioram. Por quê? Se a revolução não acontece de maneira pacífica, acontecerá de outra." Baker, por sua vez, define-se como um "criador de empregos", algo que o país precisa desesperadamente.

Com a epidemia de cólera, a estimativa é que o comparecimento nas eleições caia, avalia o embaixador do Brasil no país, Igor Kipman. O embaixador fará parte do grupo de brasileiros que vigiará as eleições contra as fraudes. A equipe conta com um ministro do TSE e um representante do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). O Brasil investiu US$250 mil no grupo internacional que trabalha desde agosto no sistema antifraude da eleição haitiana.

- Quando o voto é em cédula de papel, sempre pode haver fraude. Na hora da contagem algum nível de fraude sempre ocorre - disse ele.

Para o embaixador, as eleições serão "permeadas" pelo protesto. Segundo ele, o período mais tenso é entre a eleição e a promulgação do resultado, no dia 7.

- O protesto vai permear a eleição. Haverá voto de protesto, não há dúvidas. Eles estão buscando a solução para vários problemas. Querem a reconstrução. E, neste momento, o cólera é o seu maior problema. A solução passa pelo saneamento básico, pela educação e pela saúde. Pela reconstrução do que foi destruído.

Kipman afirmou que os principais candidatos se encontraram com o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, ou com o próprio embaixador para expor suas propostas de relação com o Brasil e com a Minustah. Sobre o cólera estar tensionando a relação com a Minustah, o embaixador faz uma ponderação:

- Isso já foi. É assunto da semana passada. Já foram feitos exames que comprovaram que não é originado dos nepaleses. Então, hoje, não há mais esse clima.

A Organização Pan-Americana de Saúde refez seus cálculos, elevando de 200 mil para 400 mil o número de casos previstos de cólera para o próximo ano no país.

Com agências internacionais