Título: A hora e a vez das milícias
Autor:
Fonte: O Globo, 02/12/2010, Opinião, p. 6

Tanto quanto foram um bem-sucedido movimento das forças de segurança do Estado, com a determinante participação de tropas federais, as operações de ocupação da Vila Cruzeiro e do Complexo do Alemão queimaram uma etapa num planejamento de mais longo prazo na guerra contra o crime organizado no Rio. Não podia ser diferente, em razão do terrorismo com o qual traficantes pretendiam emparedar o poder público fluminense, pela deflagração de ataques que exigiram, e tiveram, pronta e inequívoca resposta das autoridades.

Mas o combate ao tráfico de drogas, em qualquer estágio, é parte de uma estratégia mais ampla, na qual há outro viés do crime a ser enfrentado, que são as milícias. A expansão dos grupos paramilitares no estado é um fato: levantamento recente dos órgãos de segurança mostra que essas quadrilhas, que nasceram como cria da banda podre das polícias - e que num primeiro momento chegaram a ser vistas equivocadamente, até por autoridades, como um suposto mal menor -, já subjugam quase o dobro do número de comunidades dominadas pela maior facção do tráfico de drogas do Rio, a mesma que teve na última semana sua maior derrota para o Estado. As escaramuças destes dois últimos dias em Água Santa, entre milicianos e traficantes, pelo controle de uma favela, mostram que os grupos paramilitares não param de tentar ampliar domínios.

É uma tendência preocupante. Em primeiro lugar, porque são bandos que crescem não só pela imposição da força, mas pela diversificação de atividades, como a venda de "proteção", a oferta de "serviços" no mercado da pirataria e, eventualmente, quando lhes é conveniente, até mesmo o comércio de drogas. Neste aspecto, como lembra o ex-secretário nacional de Segurança Pública Luiz Eduardo Soares, se diferenciam dos rivais do tráfico, presos a uma realidade em franco declínio, em razão de atuarem num nicho cada vez mais inviável economicamente. Em segundo lugar, e talvez o mais importante, porque agem ao abrigo do próprio Estado, pois são quadrilhas chefiadas e formadas organicamente por uma maioria de agentes recrutados na banda podre dos órgãos de segurança.

Portanto, enfrentar as milícias, para retomar-lhes os territórios subjugados, com o imprescindível cuidado de lhes cortar as fontes de recrutamento de pessoal, é outro enorme desafio cuja hora de enfrentar se aproxima. E o relógio foi acelerado pelos eventos históricos dos últimos dias. O combate mais direto aos grupos paramilitares necessitará de um plano de ação que leve em conta as particularidades dessas facções do crime organizado, assim como está sendo feito em relação ao tráfico, com a ocupação, em primeiro lugar, de favelas menores para, a partir daí, recuperar comunidades onde as ações serão mais complexas. Neste quadro, é imprescindível - vale sempre repetir - que o governo estadual proceda a uma reforma ética e administrativa radical nas polícias, de modo a extirpar a banda podre, e nelas instituir critérios mais rígidos de seleção de agentes - até porque, neste particular, é inevitável que, com o aumento do número de UPPs, depois da inclusão do Alemão e da Vila Cruzeiro nos planos imediatos, o estado seja obrigado a acelerar a ampliação do contingente de policiais. Além disso, é crucial valorizar o seu trabalho, pelo soldo, salário, e por um regime de trabalho mais racional. As vitórias dos últimos dias fazem crescer os desafios.