Título: A conexão Alemão-Paraguai
Autor: Ramalho, Sérgio
Fonte: O Globo, 06/12/2010, Rio, p. 12

Fornecedor de maconha do complexo domina 70% do plantio da droga no país vizinho

Se comparada a uma partida de xadrez, a ocupação dos complexos do Alemão e da Vila Cruzeiro deixou em xeque a maior facção criminosa do Rio. Porém, o movimento que pode levar a um xeque-mate depende do governo federal e deve ser feito a 1.614 quilômetros do estado, na fronteira com o Paraguai. No país vizinho, um consórcio de traficantes cariocas e paulistas domina 70% das áreas de plantio de maconha em Capitán Bado e Pedro Juan Caballero, cidades na fronteira com o Mato Grosso do Sul. Um negócio milionário que tem à frente o traficante Marcelo da Silva Leandro, o Marcelinho Niterói.

O domínio das áreas de plantio garante lucros astronômicos às duas facções criminosas. Para se ter uma ideia das cifras, um quilo da droga no Paraguai é comprado por valores que variam de R$15 a R$30. Vale lembrar que R$1 equivale a 2.700 guaranis, a moeda paraguaia. No Rio, o quilo da droga varia entre R$1 mil e R$1,5 mil, garantindo uma margem de lucro superior a 3.000%. A promotora Jiskia Trentin, do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Mato Grosso do Sul, estima em US$20 milhões (R$34 milhões) as cifras movimentadas mensalmente pelo tráfico de maconha na fronteira.

As áreas de plantio da droga no país ocupam seis mil hectares, aproximadamente 64,8 mil metros quadrados ou seis mil campos de futebol. O número consta do relatório mundial sobre drogas 2010 da ONU e foi estimado em 2008 pela Secretaría Nacional Antidrogas (Senad), do Paraguai. Juntas, as facções carioca e paulista dominam as regiões, onde estão concentrados 4,2 mil hectares - 48,6 mil metros quadrados - de terras usadas no cultivo da Cannabis sativa. A cidade paraguaia de Capitán Bado figura como o principal reduto do bando.

Beira-Mar: 3 mortes garantiram domínio

O domínio da região por traficantes brasileiros começou em 2001, após os assassinatos de Ramón e Mauro, filhos de João Morel, então considerado o rei da maconha. Investigações da Senad e de promotores da Fiscalía de Amambay - estado onde estão localizadas as cidades de Pedro Juan Caballero e Capitán Bado - apontam Luiz Fernando da Costa, o Fernandinho Beira-Mar, como mandante dos crimes. No processo que tramita na Justiça paraguaia consta o áudio de uma entrevista na qual Beira-Mar assume a responsabilidade pelas mortes dos irmãos, em 13 de janeiro. Uma semana depois, João Morel foi encontrado morto a facadas em sua cela, no presídio de Campo Grande (MS).

A partir das execuções dos chefes da família Morel, a facção de Beira-Mar ampliou o domínio territorial de Capitán Bado a Pedro Juan Caballero. Investigações conjuntas da Polícia Federal e da Senad indicam que com a prisão de Beira-Mar, hoje na Penitenciária Federal de Campo Grande (MS), Marcelinho Niterói passou a comandar os "negócios" da quadrilha na fronteira. Dados da PF mostram que 80% da maconha apreendida do Rio têm como procedência o Paraguai. Os demais 20% saem de plantações na Bolívia, país que apresentou aumento nas áreas de cultivo da droga, segundo relatório da ONU.

Aliado antigo de Beira-Mar, que o trata como "filho louro", Marcelinho Niterói é de uma família de classe média de Icaraí. Além do plantio, ele também coordena as rotas de transporte da droga para abastecer os pontos de venda da facção no Rio. Do Paraguai, a droga segue em caminhões atravessando o Mato Grosso do Sul e cidades do interior de São Paulo, de onde é enviada ao Rio. O mesmo acontece com a cocaína, que tem a Colômbia como procedência. Marcelinho Niterói está por trás da transformação do Complexo do Alemão em principal entreposto de distribuição de drogas da facção. Prova disso são as 36 toneladas de maconha encontradas na comunidade durante a ocupação.

A decisão de fazer do Complexo do Alemão um centro de distribuição de drogas foi tomada a partir do avanço das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). A estratégia foi detectada pela Subsecretaria de Inteligência da Secretaria de Segurança Pública do Rio como maneira de a quadrilha tentar evitar prejuízos com apreensões de carregamentos nessas áreas. A partir da iniciativa, as drogas vendidas nas localidades de UPPs eram embaladas no Alemão e levadas por idosas, crianças e mulheres grávidas, como acontecia na Cidade de Deus. A implantação das UPPs resultou na perda de domínio territorial em comunidades nas zonas Sul e Norte, onde a facção de Marcelinho Niterói arrecadava grandes somas com a venda de drogas.

O domínio exercido pelo consórcio das facções carioca e paulista nas zonas de plantio de maconha acontece de três formas, segundo dados da Senad e da Polícia Federal. Na mais comum, os traficantes brasileiros distribuem sementes entre pequenos e médios produtores rurais paraguaios, que plantam a maconha associada a culturas como milho e soja. Na época da colheita, geralmente a cada quatro meses, eles recolhem o produto pagando valores muito inferiores aos de revenda no Rio.

Há casos ainda de brasileiros que arrendam ou mesmo compram fazendas para o cultivo da droga no país vizinho. Essa participação direta foi revelada em investigações da PF em Ponta Porã, cidade brasileira que faz fronteira com Pedro Juan Caballero. O levantamento resultou num processo no qual o juiz Odilon de Oliveira, da 3ª Vara Federal de Campo Grande (MS), determinou ano passado o sequestro de 32 fazendas no país vizinho, o que ainda não foi executado. Dessas, 19 estão em nome do brasileiro Luiz Carlos da Rocha, que também mantinha ligações com Beira-Mar. As outras 13 propriedades figuram em nome de Odacir Antônio Dameto, que já foi conhecido como rei da soja no Paraguai.

Para o juiz federal Odilon de Oliveira, não há dúvidas de que traficantes brasileiros passaram a dominar a maior parte da produção de maconha no Paraguai. O juiz - alvo de várias ameaças de morte de narcotraficantes - acredita que apenas com uma maior integração entre autoridades brasileiras e paraguaias o tráfico na fronteira será desarticulado:

- Atualmente, essa integração acontece apenas entre a Polícia Federal e a polícia paraguaia, que fazem operações conjuntas para erradicar plantações de maconha. Iniciativa que não basta para acabar com o poder dos narcotraficantes. É preciso haver maior integração entre os poderes Judiciário e Legislativo dos dois países.

Odilon acrescenta que o sequestro das 32 fazendas, usadas para o plantio da droga no Paraguai, não foi concretizado porque o governo paraguaio exige que os processos tenham sido julgados em todas as instâncias para, então, permitir o arresto dos bens. O juiz defende a aprovação de leis comuns entre os países do Mercosul para inibir a atuação dos narcotraficantes nas fronteiras.