Título: Cortejo do governo PT aos EUA
Autor: Farah, Tatiana ; Azevedo, Cristina
Fonte: O Globo, 08/12/2010, O Mundo, p. 33

Segundo relato de 2002, promessa era diplomacia mais alinhada a Washington e distante de Fidel

Pouco mais de um mês antes de sua posse e sob o olhar atento dos mercados, o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva e seus principais assessores demonstraram que o futuro governo de esquerda no Brasil seria mais alinhado com os Estados Unidos, na continuação de um esforço de se distanciar do venezuelano Hugo Chávez e do cubano Fidel Castro, segundo a percepção do Departamento de Estado americano, revelada nos documentos do WikiLeaks aos quais O GLOBO teve acesso. Numa reunião em novembro de 2002 entre Otto Reich, então subsecretário de Estado para o Continente, e Lula, José Dirceu, Antonio Palocci e Aloisio Mercadante, os petistas mostraram a participação no Fórum de São Paulo como uma tentativa de dar um exemplo democrático ao continente; disseram que grupos que operam fora do processo democrático, como as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), não lhe interessavam; ao mesmo tempo em que prometiam uma diplomacia dura.

Os bastidores das relações entre os EUA e o Brasil, revelados nos telegramas, mostram que a partir da posse essa proximidade não se confirmou - uma situação que teria mudado com a reeleição em 2006, com Lula chegando a se queixar do distanciamento entre os dois países. Na avaliação do ex-embaixador americano no Brasil, Clifford Sobel, Lula dá muita importância às relações pessoais com os presidentes para conduzir a política externa. No relato de seu encontro de despedida do cargo com o presidente brasileiro, em julho do ano passado, Sobel afirma também que o assessor especial da Presidência, Marco Aurélio Garcia, tem maior peso sobre as decisões da América do Sul do que o chanceler Celso Amorim.

A Embaixada dos EUA em Brasília disse que não pode comentar o conteúdo dos telegramas, mas ressalvou que os "vazamentos esporádicos são retratos incompletos, que pulam de um ano para o outro", não deixando o leitor visualizar uma imagem completa da democracia americana. A seguir, alguns dos principais trechos dos telegramas aos quais O GLOBO teve acesso.

OS ELEITOS: O encontro entre Reich, Lula e os petistas destinados a posições de destaque no Gabinete presidencial foi considerado extremamente positivo e reforçou nos americanos a impressão de que o presidente eleito tentava "se distanciar de Castro e de Fidel Castro", segundo o telegrama de 22 de novembro de 2002. Um dos indícios é a conversa com Mercadante, na qual ele minimiza a participação no Fórum de São Paulo, dizendo que "seu principal interesse é desenvolver a esquerda na América Latina", que muitos dos participantes são esquerdistas "atrasados e ultrapassados que podem aprender muito com o modelo democrático do PT". Lula, por sua vez,afirma que o PT deseja resgatar a imagem do Brasil para que funcionários públicos não pareçam "um bando de ladrões irresponsáveis", nem o país "outra Colômbia". O presidente eleito manifesta a esperança de que após a visita os EUA "não mais compreendam mal o PT".

CRÉDITO, CRÉDITO, CRÉDITO: O encontro mostra o Brasil disposto a aumentar a parceria comercial. Segundo Reich, Mercadante conta que era prioridade para o Brasil obter apoio de Washington para ter maior acesso a créditos comerciais e duplicar o comércio com os americanos. Palocci é enfático e diz que o Brasil tinha três prioridades a curto prazo: "Crédito, crédito e crédito". Ao lado, Dirceu afirma que o Brasil quer concluir um acordo bilateral, mas teria de consultar parceiros no Mercosul.

DIPLOMACIA DURA: Para os funcionários americanos, o futuro governo mostrou querer "relações fortes e negociações duras". Embora o PT passasse a sensação de que o Brasil só poderia alcançar seu potencial em cooperação com os EUA, Lula disse que a diplomacia brasileira não vinha sendo "dura o suficiente". Sobre a Área de Livre Comércio das Américas, os petistas manifestaram o interesse em negociar, "mas defendendo vigorosamente os interesses do Brasil".

FARC: No mesmo encontro, José Dirceu, que viria a assumir a Casa Civil, disse aos EUA que as Farc seriam tratadas pelas Forças Armadas "como inimigos" caso ultrapassassem a fronteira. Ele acrescentou que grupos como as Farc que agem fora do processo democrático "não nos interessa", relata o telegrama. Repetidamente as Farc são acusadas de transpor a fronteira brasileira, poucas vezes resultando em confrontos. Ao ser consultado sobre a situação dos direitos humanos em Cuba, Dirceu, que se exilou no país na época da ditadura, respondeu de forma diplomática: "Nós simplesmente teremos que concordar em discordar", manifestando as diferenças.

REELEIÇÃO E RETÓRICA: A percepção após a reeleição de Lula, em 2006, é bem diferente da promessa inicial de laços mais estreitos. O despacho do embaixador Clifford Sobel de 1 de novembro de 2006 diz que apesar de reportagens de que a política externa no segundo mandato seria mais próxima Aos EUA, a embaixada não via "provas concretas dessa tendência". No entanto, ele começa a revelar indícios de que isso poderia acontecer. Numa visita ao Planalto, Sobel ouviu de Gilberto Carvalho, chefe de Gabinete de Lula, que o segundo mandato se caracterizaria por "relações de qualidade com parceiros tradicionais", pedindo que o embaixador fosse compreensivo caso a retórica da campanha tivesse parecido crítica aos EUA. No encontro com Lula, descrito num telegrama de sete dias mais tarde, Sobel teve reforçada a ideia de que o governo brasileiro buscava uma aproximação. "Pretendemos adotar todas as medidas necessárias para deixar claro, acima de qualquer dúvida, que os EUA e o Brasil têm uma relação estratégica", teria dito Lula.

O CHEFE: O ex-embaixador Clifford Sobel escreve ao Departamento de Estado que Marco Aurélio Garcia manda mais que Amorim. Em telegrama que fala de seu encontro de despedida com Lula, no ano passado, o presidente conta sobre o novo acordo da Itaipu, com o Paraguai. Na ocasião, o governo decidiu triplicar o preço da energia elétrica paga aos paraguaios. "Entendemos que o conselheiro Marco Aurélio Garcia derrubou as objeções ao acordo por parte do ministro das Relações Exteriores, uma dinâmica que temos visto com frequência nas relações regionais", escreveu.

VIZINHO PROBLEMA: Sobel informa que Lula acabava de retornar da cúpula do Mercosul, no Paraguai, e afirmara que os EUA ainda tinham "problemas significativos de imagem e de relacionamento com os países do continente, mas que o presidente Obama seria capaz de reverter a situação". Embora tenha dito que a região era pacífica, o presidente Lula falou sobre alguns problemas regionais. "Ele mencionou Evo Morales, da Bolívia, em particular", escreveu Sobel.

IRÃ: O presidente avisou aos americanos sobre seus planos de viajar ao Oriente Médio, tanto para Israel e Palestina quanto para visitar o presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad. Ele contou que estava planejando ir ao Irã em maio com o objetivo de "baixar a temperatura" no processo do Irã, escreveu Shannon, que completou: "O presidente também mencionou que ele visitará a Palestina em março, indicando que vê esta como uma outra área de cooperação potencial entre o Brasil e os EUA".