Título: Bingo serve de biombo ao crime
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Fonte: O Globo, 11/12/2010, Opiniao, p. 6

Já houve bem intencionadas iniciativas para o Estado usar o jogo como fonte de recursos para ajudar o futebol, entre outros setores. Tanto Pelé quanto Zico colocaram seus nomes em leis que estabeleceram normas para, legalizado o bingo, parte da receita ser destinada aos clubes.

É possível que em outro país o mecanismo funcionasse. Não no Brasil, com uma longa história de contraventores influentes nas polícias, com ramificações dentro de instituições públicas e no mundo político. Não demorou para os bingos serem desvirtuados.

Até que em 2004, no segundo ano do governo Lula, apareceu um vídeo em que Waldomiro Diniz, assessor do então ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, pedia propina ao bicheiro e empresário de jogos em geral Carlos Augusto Ramos, o Carlinhos Cachoeira. As cenas haviam sido gravadas em 2002, quando Waldomiro era presidente da Loteria Estadual do Rio de Janeiro. Como o assessor de Dirceu também captava dinheiro para campanhas de petistas ¿ Benedita da Silva e Geraldo Magela, além de Rosinha Garotinho ¿ o escândalo ganhou inevitáveis implicações políticas. Tudo amplificado pelo fato de o achacador de 2002 ser próximo ao poderoso Dirceu de 2004.

Para evitar qualquer maior desdobramento indesejável, o Planalto logo editou MP para proibir o bingo e as máquinas caças-níqueis. Desde então atua um forte lobby em Brasília para a volta da jogatina. Tão poderoso é esse grupo de pressão que patrocinou na quarta-feira, na Câmara, uma das mais degradantes cenas desta legislatura: deputados abertamente denunciaram a compra literal de apoio para que o projeto da volta dos bingos seja votado em regime de urgência. Seja como for, 258 deputados votaram como queria o lobby, à frente do qual desponta Paulo Pereira da Silva (PDT-SP), Paulinho da Força. Foi tão bem articulada a operação que, por acordo de líderes, a votação deste projeto terminou vinculada à de um outro, de interesse dos governadores, de prorrogação da Lei Kandir.

Diante de denúncias incisivas de que a corrupção corre solta na tramitação do projeto dos bingos, feitas por deputados como Miro Teixeira (PDT-RJ), Marcelo Itagiba (PSDB-RJ) e Fernando Chiarelli (PDT-RJ), houve parlamentar que garantisse que na votação do mérito em si será contra. A ver.

Os defensores da volta dos bingos argumentam que milhares de empregos serão criados. Risível, pois o tráfico de drogas também gera renda e empregos, e nem por isso pode ser tolerado. É crucial saber que os antigos bicheiros também se modernizaram e se articularam com fortes grupos criminosos de fora do país, para a exploração de vários tipos de jogos. Não deve ser esquecida a guerra de máfias de caças-níqueis no Rio, em que se envolveu a cúpula da Polícia Civil do governo Rosinha. Devem ser lembradas mortes já ocorridas de donos de bingos, um indicador de quais os interesses que se encontram por trás de tudo isso.

Legalizar os bingos é institucionalizar uma grande lavanderia de dinheiro sujo, entre outras mazelas. Não se está mais no Brasil do pós-guerra, quando o jogo foi colocado na ilegalidade por pressão da Igreja. Vive-se no Brasil do tráfico globalizado de drogas e armas, do Alemão e da Vila Cruzeiro.