Título: EUA e Vaticano:curto-circuito na comunicaçao
Autor: Mora, Miguel
Fonte: O Globo, 11/12/2010, O Mundo, p. 42

Telegramas da embaixada americana na Santa Sé expõem divergências sobre Cuba, guerra no Iraque e abusos

O PAPA BENTO XVI recebe a primeira-dama e o presidente dos Estados Unidos, Michelle e Barack Obama, no Vaticano: foi o primeiro encontro entre os dois líderes

MADRI. Mergulhar nos vários telegramas da embaixada americana na Santa Sé equivale a assistir ao fascinante encontro entre os impérios. O choque cultural entre um país presidencialista, moderno, democrático, expansivo e republicano, e um sistema de poder monárquico, milenar, duro e hermético, não impede os americanos de compreender a importância de ter o Vaticano como aliado.

A impressão que deixam os despachos de 2006 em diante é que os EUA se aproximaram progressivamente do Vaticano e do Papa Bento XVI, depois de alguns anos de enorme desconfiança mútua motivada pelo escândalo de abusos sexuais e pela invasão do Iraque.

Os telegramas mais antigos, quase todos de 2001, durante o Papado de João Paulo II, revelam que o Vaticano expôs com toda a franqueza e muita insolência que ¿a ditadura laica de Saddam Hussein¿ seria sempre mais favorável à liberdade religiosa e aos 600 mil cristãos do Iraque do que ¿qualquer solução¿ que a ¿guerra injusta¿ pudesse encontrar, incluindo a ¿ditadura islâmica¿.

O embaixador na Santa Sé, Miguel Humberto Diaz, enviado por Obama em maio de 2009, e sua número dois, Julieta Valls ¿ ambos católicos e de origem hispânica ¿ informam que a crise causada pelos abusos sexuais a menores na Irlanda será ¿dolorosa durante muitos anos¿; e comentam as dificuldades pelos vaivéns no diálogo entre católicos e judeus.

Para Igreja, Chávez é o novo Fidel Castro

Além disso, dedicam páginas e dias na descrição e críticas às ¿falhas e erros¿ cometidos pela comunicação do Vaticano ao lidar com esses problemas. Segundo Julieta, ¿o Vaticano é um aliado formidável que necessita de aulas de relações públicas¿. Ela explica que ¿no Vaticano, o Papa é responsável por todas as decisões importantes, mas ao mesmo tempo tende a delegar tarefas para quem sabe mais ou é mais bem informado sobre cada assunto¿, e que aí entra em jogo uma cúria ¿italocêntrica, descentralizada e inverossímil¿ que se comunica por mensagens ¿escritas numa linguagem de códigos que ninguém de fora pode decifrá-las¿.

Os telegramas também fazem referência à situação cubana. O país domina muitas das reuniões bilaterais dos últimos anos. Desde que Obama assumiu o governo, o Vaticano vem redobrando seus esforços para convencer Washington a acabar com o embargo à ilha.

Documento de 21 de janeiro deste ano conta que o monsenhor Angelo Accatino, encarregado de assuntos cubanos na Santa Sé, alertou a número dois da embaixada americana que o Vaticano está muito preocupado porque a ¿desastrosa situação econômica da ilha e a tensão política podia acabar em banho de sangue¿. Accatino explica, ainda, que é preciso ¿dialogar, por mais desagradável que seja¿, e sustenta que ¿o novo Fidel Castro do Ocidente e seu verdadeiro sucessor não é Raúl (Castro), e sim (Hugo) Chávez.¿

Outro documento secreto, de dezembro de 2008 e enviado pela embaixada de Roma ao Departamento de Estado, narra uma conversa entre Julieta e o chefe da segurança do Vaticano, Domenico Giani. A americana afirma que o FBI quer coordenar um plano antiterrorista com o Vaticano para evitar um possível ataque da al-Qaeda contra o Papa, e para proteger os milhões de turistas que visitam a Praça de São Pedro e os Museus do Vaticano todos os dias. O Vaticano, afirma o telegrama, recusou no passado coordenar sua segurança com os EUA, já que a Santa Sé ¿não quer ser vista como um Estado muito próximo de qualquer outro Estado.¿