Título: Moedas de troca
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Fonte: O Globo, 13/12/2010, Opinião, p. 6
Apulverização partidária no Brasil, acima do desejável, tem provocado, a cada eleição e depois dela, intensa negociação para a montagem de chapas e formação de governos. No Executivo federal, este amplo balcão de acertos é mais visível. Porém, em cada estado e município de algum porte o cenário se repete.
Como não existe uma cláusula de barreira adequada - para barrar nas Casas legislativas legendas nanicas, sem efetiva representatividade -, há cenas pornográficas de ausência de ética nestes momentos do calendário político. Existe, por exemplo, partido que vive de vender - literalmente - tempo de TV e rádio no horário gratuito.
Talvez o símbolo desta degradação na vida pública tenha sido a montagem, no primeiro governo Lula, do esquema do mensalão para comprar - também literalmente - o apoio de partidos menores ao Palácio. O resultado foi a cassação do ex-ministro e deputado José Dirceu (PT-SP), considerado o "chefe da organização criminosa" pela Procuradoria-Geral da República, e do também deputado federal Roberto Jefferson (PTB-RJ), beneficiário e denunciante do esquema. Há, ainda, um robusto processo sobre o mensalão a ser julgado no Supremo.
Como, sem alianças amplas, o Planalto não assegura margem de governabilidade no Congresso, vive-se um regime de "presidencialismo de coalizão". O problema não está na coalizão em si. A questão está nas moedas usadas para negociar apoios. Em alguns casos, é moeda mesmo...
Na Europa, onde muitos países são parlamentaristas, acertar alianças para a formação de governo, ou mesmo a sustentação deles em momentos de crise, é usual. Na Alemanha, por exemplo, os verdes já foram governo devido a um acerto entre partidos. Angela Merkel, atual chanceler, é democrata-cristã (CDU) e atraiu os liberais (FDP), para montar um governo de centro-direita, e tem obtido invejável sucesso no enfrentamento dos efeitos da crise financeira mundial. Não é por acaso que na Alemanha vigora uma cláusula de barreira efetiva. Está representado no Parlamento quem tem voto para tal. No fundo, é simples.
A complicação brasileira tem causas múltiplas. Uma, a legislação eleitoral tíbia, que agora recebe importante reforço da Lei da Ficha Limpa. Os partidos, por sua vez, não ajudam no peneiramento dos seus quadros - embora, com a Ficha Limpa, tendam a ser mais cuidadosos. Para tornar o quadro mais sombrio, Lula e o PT levaram para Brasília o clássico lema da esquerda de que "os fins justificam os meios". Ou seja, para obter espaços de governabilidade, vale tudo.
No Brasil, em que o presidencialismo é quase imperial, o Executivo pode conseguir tudo - ou quase tudo, pois, felizmente, instituições republicanas, como o Poder Judiciário, têm dado demonstrações de vigor.
O festival de política de baixo clero que transcorre na montagem do governo Dilma, com o PMDB escancaradamente interessado apenas em ter controle sobre o maior número possível de verbas polpudas, é resultado destas distorções.
Há um projeto de governo, cujos contornos começam a ser divulgados por ministros da área econômica. Enquanto isso, aliados, sem qualquer preocupação com linhas programáticas, trocam cotoveladas na briga por cargos e verbas.
A Ficha Limpa é um passo na direção certa. Mas precisam ser dados outros, para que um dia alianças sejam negociadas com base em programas e projetos concretos de governo.