Título: Americanos desconfiavam do sistema judiciário brasileiro
Autor: Passos, José Meirelles
Fonte: O Globo, 15/12/2010, O Mundo, p. 36

Documentos da Embaixada dos EUA sobre Caso Dorothy comparam Pará a faroeste e revelam suspeitas de ligações de autoridades com proprietários de terras

A desconfiança do governo dos Estados Unidos do sistema judiciário do Brasil e da capacidade do governo de implementar a redistribuição de terras - ocupadas ilegalmente por latifundiários - aparece claramente numa série de telegramas enviados a Washington pela embaixada americana em Brasília, referindo-se especificamente às investigações do assassinato da freira Dorothy Stang. Ativista pela reforma agrária, ela foi morta no Pará em fevereiro de 2005.

Num dos despachos, apesar de afirmar estar animado com a rápida reação do governo federal - que pôs a Polícia Federal no caso e enviou o Exército à região, para dar garantias ao longo do processo criminal - o então embaixador John Danilovich manifestou dúvidas quanto ao desfecho: "Os tribunais são o elo frágil no sistema brasileiro; uma vez que o caso chegue lá, será preciso um bocado de pressão para fazê-lo avançar. Planejamos acompanhar isso bem de perto", garantiu, como mostram documentos disponibilizados pelo WikiLeaks ao GLOBO.

No mesmo despacho, ele reforça a preocupação das autoridades americanas em relação à Justiça brasileira: "É a lentidão do governo federal e dos tribunais, em confiscar e redistribuir essas terras, e a percepção de que juízes locais favoreceram de forma desnecessária os proprietários de terras, que incitaram o recente ciclo de tensões."

Leis rigorosas não cumpridas

Em outro relato, Danilovich exibe uma clara desconfiança de que as providências anunciadas pelo governo brasileiro seriam, de fato, implementadas. "O assassinato de Stang está forçando o governo federal a confrontar a ilegalidade e a degradação ambiental, assunto sobre o qual muito se fala há muito tempo, mas pouco se faz a respeito", diz. "Stang e outros ativistas há muito buscavam a redistribuição de terras para os sem-terra, e também a proteção de áreas ambientais. O governo apoiou tais conceitos, mas faltou a ele vontade política para agir."

Num telegrama posterior, o mesmo diplomata afirmou: "O Brasil já dispõe de algumas das leis ambientais mais severas do mundo. (...) Existe uma enorme divisão entre dizer/criar e realmente fazer." O texto diz que, se o governo de fato implementasse as leis, a degradação e a violência diminuiriam no Pará.

Três agentes do FBI (a polícia federal dos EUA) participaram das investigações. Um deles trabalhava na embaixada, e os outros vieram do Esquadrão Extraterritorial, de Miami. "O FBI vai manter um papel extremamente discreto", garantiu o embaixador, justificando de certa forma, a presença dos agentes: "Muita gente está convencida de que as autoridades estaduais (do Pará) liderando a investigação estão seriamente comprometidas, devido a ligações impróprias com grandes proprietários de terras, e que uma investigação completa e um julgamento justo não acontecerão, a menos que o caso seja levado adiante por autoridades federais."

O pacote de telegramas referentes ao assassinato da irmã Dorothy, de 74 anos - no Brasil havia 30 anos e naturalizada em 2003 - mostra uma intensa preocupação para que o caso fosse assumido pelas autoridades federais. Danilovich, em certo momento, demonstrou muita apreensão pelo fato de o então ministro da Justiça, Marcio Thomaz Bastos, ter se pronunciado publicamente contra a federalização do caso.

"Dadas a agressiva investigação do governo federal e a sensibilidade das percepções políticas pela forma como conduz esse caso de tão alta visibilidade, estamos perplexos com o pensamento por trás da posição de Bastos e faremos consultas adicionais", informou Danilovich.

"Stang era um arquivo vivo"

Mais tarde, em outro telegrama, ele dá a impressão de ter reconsiderado a opinião, justificando-a através de uma aparente divisão dentro do sistema: "Parece que Bastos está aberto à federalização, mas pode ser incapaz de admitir isso publicamente devido a opiniões divergentes dentro do sistema judiciário."

Em seus relatos, Danilovich compara o Pará ao Oeste dos EUA na época de sua conquista, no século XIX. "O Pará é, em muitas maneiras, semelhante ao faroeste americano: isolado, esparsamente povoado e sem lei, com uma notável falta da presença do governo federal. Preenchendo o vazio de poder estão os ricos donos de terra - que frequentemente obtiveram suas terras de forma ilegítima - e seus pistoleiros".

Irmã Dorothy vinha recebendo ameaças, mas recusara proteção das autoridades do Pará "porque suspeitava das lealdades da polícia estadual e porque sentia que, se estivesse bem protegida, assassinos em potencial atacariam aqueles que trabalhavam com ela e não tinham proteção", segundo a embaixada. Num dos documentos, Danilovich conta que um promotor federal disse a diplomatas americanos estar "profundamente preocupado" com a possibilidade de a investigação ser "intencionalmente comprometida pelas autoridades estaduais".

Nesse mesmo telegrama, o diplomata registra: "Acredita-se amplamente que autoridades estaduais corruptas permitiram apropriações ilegais de terras em larga escala e a derrubada de árvores por muitos anos. Ele (nome sob proteção) disse que Dorothy Stang era um arquivo vivo de roubos de terra, persistente e bem preparada e, portanto, ela se tornara uma pedra no sapato dos proprietários de terra e da polícia estadual".

Segundo Danilovich, a fonte contou que a polícia paraense, nas áreas rurais, era ligada a grandes proprietários, "e policiais também são contratados como pistoleiros e trabalham de forma a obstruir intencionalmente as investigações". Além disso, o promotor disse que "gente graúda na conspiração poderia facilmente "apagar" (sic) os suspeitos, hoje na cadeia, arranjando para que sejam mortos ou permitindo que escapem".

Sucessora é ameaçada

Os papeis divulgados pelo WikiLeaks mostram, ainda, que o então superintendente da Polícia Federal no Pará, José Sales, disse - em conversa com um agente consular - que Dorothy "tinha ido longe demais" em sua cruzada pela reforma agrária. "Ela, certa vez, pediu a Sales para remover os invasores a todo custo. Quando Sales respondeu que isso teria que ser feito através de meios legais, ela respondeu que o faria do jeito dela".

Hoje, quase seis anos após o assassinato, quatro homens foram condenados a penas de 17 a 30 anos de prisão, e um quinto, o fazendeiro Regivaldo Pereira Galvão, considerado um dos mandantes, recorre da sentença em liberdade. Dorothy foi substituída pela irmã Jane Dwyer, 69 anos, americana naturalizada brasileira, também ameaçada.