Título: Brasil apelou a EUA sobre Honduras
Autor: Azevedo, Cristina
Fonte: O Globo, 17/12/2010, O Mundo, p. 41

Amorim disse a americanos que Chávez queria fazer de Zelaya um mártir, revelam telegramas

Opresidente da Venezuela, Hugo Chávez, "queria fazer de (Manuel) Zelaya "um mártir", mas o governo brasileiro o convenceu que apenas os Estados Unidos poderiam influenciar o que acontecia em Honduras e precisavam ser consultados". A frase foi dita pelo chanceler Celso Amorim ao conselheiro de Segurança Nacional dos EUA, James L. Jones, em setembro do ano passado, segundo um dos telegramas americanos que cobrem o período mais crítico da crise em Honduras, quando o presidente deposto tentava retornar ao país. Revelados pelo WikiLeaks, eles mostram que, para os EUA, o Brasil foi surpreendido e não estava pronto para lidar com a situação. Revelam também como, à medida que os esforços da Organização de Estados Americanos (OEA) se revelavam infrutíferos, Brasília apelou várias vezes a Washington, tanto na busca por uma solução, quanto por ajuda para a embaixada.

Os documentos de 4 de setembro de 2009 a 19 de fevereiro de 2010 trazem uma visão crítica da atuação brasileira. "Tendo manifestado seu apoio à volta de Zelaya e sendo atraído - quase certamente sem aviso prévio - para o centro da crise, uma posição à qual não está acostumado, o Brasil parece perplexo sobre o que fazer em seguida. É curioso que o governo aparentemente não tenha adotado um papel mais assertivo na busca de uma solução. Em vez disso, sentado no banco de trás, parece que o Brasil espera que EUA, OEA e ONU protejam seus interesses", escreveu Lisa Kubiske, ministra conselheira da embaixada americana, em outubro de 2009.

Frágil e com lucidez posta em dúvida

Zelaya foi deposto em 28 de junho do ano passado, acusado de forçar um plebiscito com a intenção de se candidatar à reeleição. Levado à força para a Costa Rica, reapareceu na embaixada brasileira em Tegucigalpa, abrindo um novo capítulo na crise e arrastando o Brasil para o centro dela.

Primeiro secretário da Divisão de México e América Central do Itamaraty, Renato de Ávila Viana relatou que um parlamentar ligou para a embaixada e disse que a mulher de Zelaya queria ir até lá. O encontro com Xiomara Castro foi autorizado, mas ela apareceu com o marido. O presidente Lula foi avisado num voo para Nova York, onde participaria de uma reunião na ONU. Lula pediu segredo até "que Chávez e Zelaya anunciassem" o retorno do presidente deposto, o que aconteceu uma hora depois da entrada na embaixada. Viana ofereceu asilo ao deposto, mas ele recusou.

Nos quatro meses seguintes, a embaixada brasileira foi cercada, teve a água e luz cortadas, e a movimentação de pessoas e de suprimentos foi restrita - brasileiros podiam sair, mas não podiam retornar. "Está claro que a estratégia é asfixiar a embaixada", disse Viana, segundo o relato. A guerra psicológica, com luzes e som alto à noite, teria surtido efeito. A comissão parlamentar brasileira que viajou ao país em outubro daquele ano - e descrita pelos americanos como "caótica" - teria encontrado Zelaya "frágil, podendo não estar completamente lúcido", segundo Janeta Pieta Rocha (PT-SP) teria dito a Kubiske.

A situação na embaixada, que além do presidente deposto e da ex-primeira-dama chegou a abrigar 70 simpatizantes, foi descrita como "horrenda". Preocupados com a segurança, Lula e Amorim chegaram a telefonar para Zelaya, pedindo que contivesse os manifestantes, já que ele conseguia se comunicar por celular.

Com a embaixada cercada e sem suprimentos, o Brasil teria pedido à representação americana, em Tegucigalpa, "ajuda para manter a segurança e diesel para o gerador". "Viana lamentou que a embaixada brasileira não tivesse "o tipo de proteção que a americana tem, os marines"", diz Kubiske. No entanto, ela observa que o embaixador Gonçalo Mello Mourão, chefe do Departamento para América Central e Caribe, negara à Embaixada do Reino Unido que o Brasil tivesse pedido ajuda aos EUA. Mourão dissera ainda aos britânicos, segundo o relato, que o governo acreditava que Chávez estava por trás do plano de Zelaya de ir à embaixada brasileira.

Os pedidos brasileiros se deram também em outros níveis, segundo os telegramas: ajuda para um brasileiro membro da comissão da OEA entrar em Tegucigalpa, intervenção para brasileiros terem acesso à embaixada, comunicação com o governo interino de Roberto Micheletti. "Os brasileiros conseguem se comunicar apenas com os militares, e isso recentemente após assistência da embaixada dos EUA".

Paralelamente, os esforços da OEA não vingavam, e o prêmio Nobel da Paz Óscar Arias, que intermediaria a crise, estava se distanciando da situação, segundo relato de Viana. Para Kubiske, o Brasil se concentrava em envolver EUA e Espanha na questão. Senadores brasileiros pressionaram para que Washington "não se desviasse da tradição de assumir um forte papel na promoção da democracia na região".

A tentativa de explicar o empenho do Brasil para que o presidente deposto voltasse ao poder levou funcionários americanos a ouvirem analistas, políticos e membros do governo. A conclusão foi de que alguns petistas viam regimes da América Central, eleitos e de tendência de esquerda, como "aliados júniores que precisam ser protegidos". Mais do que isso, o PT temia um efeito-dominó que afetasse dois recém-eleitos: Mauricio Funes, em El Salvador; e Álvaro Colom, na Guatemala - uma noção que poderia ser "significativa", segundo o então cônsul de São Paulo, Thomas White.

Uma definição curiosa partiu de um dos fundadores do PT, o vereador José Américo, de São Paulo. Américo reconheceu os problemas do presidente deposto, mas ressaltou: "Zelaya era como um mau genro. Embora pudesse causar problemas, ainda era da família e o PT era obrigado a ajudá-lo."