Título: Código Civil: mudança inútil
Autor: Bermudes, Sergio
Fonte: O Globo, 21/12/2010, Opinião, p. 7

Vários processualistas esperam que, na próxima sessão legislativa, a Câmara dos Deputados não repita o erro do Senado Federal, aprovando um novo Código de Processo Civil. A revogação do atual Código só dificultará a administração da justiça e prejudicará as pessoas que recorrerem ao Judiciário, sem vantagem para ninguém. O país não necessita, absolutamente, mudar o atual Código, nem conseguirá resolver os graves problemas das partes e de terceiros, mediante a substituição do atual CPC. O sábio Francesco Carnelutti reprovou a pretensão, corrente na Itália do seu tempo, de transformar a realidade pela mudança das leis. Essa crítica bem se aplica ao Brasil de hoje.

O projeto do Código de Processo Civil, que mereceu a aprovação do Senado, coonestou, em larga parte, um anteprojeto superficial, feito com injustificável rapidez, sem a análise das carências do Judiciário do Brasil. Tirante exposições a auditórios complacentes, ou desinformados, não houve qualquer consulta a grandes especialistas, como José Carlos Barbosa Moreira, no consenso unânime o maior processualista brasileiro e um dos melhores do mundo. Esta omissão, fruto do propósito de elaborar uma reforma a toque de caixa, é tão absurda quanto se criar normas técnicas de arquitetura ou cirurgia plástica sem pedir a opinião de Oscar Niemeyer ou Ivo Pitanguy.

Esqueceram-se, os autores do anteprojeto e os senadores que aprovaram o projeto, de verificar se é conveniente a substituição do Código atual por um outro, diferente daquele pela introdução de cerca de 200 artigos, na maioria supérfluos, redigidos em mau vernáculo. Um novo Código demandará a reformulação da doutrina, impondo a edição de novas obras, incompatíveis com o baixo poder aquisitivo dos interessados. Eles precisarão também frequentar cursos, palestras e seminários inevitavelmente dispendiosos e enfrentar problemas de aprendizado de toda ordem. Juízes e tribunais deverão adaptar sua jurisprudência à legislação superveniente, com perda lamentável de parte significativa do que construíram até agora. Convidado pela Editora Forense para atualizar os 17 tomos dos Comentários ao Código de Processo Civil, de Pontes de Miranda, tive que me limitar à publicação de dois ou, no máximo, três volumes por ano, a fim de evitar o encalhe dos demais, decorrente das dificuldades financeiras dos consulentes das obras, num país onde um professor de Direito recebe, em média, remuneração mensal que não ultrapassa R$3 mil e um advogado comum não embolsa mais de R$6 mil por mês.

O projeto acolhido pelo Senado absorveu muitos dos erros do anteprojeto que pecou pela sofreguidão, incompatível com os cuidados que se devem pôr na feitura de leis de longa duração. O Código de Processo Civil hoje vigente resultou de um anteprojeto, apresentado pelo professor Alfredo Buzaid, então o maior processualista brasileiro, em 1964, para converter-se, somente em 1973, na lei 5.869, de 11 de janeiro daquele ano.

Mesmo um perfunctório exame do projeto agora aprovado mostrará que ele seguiu o anteprojeto, o qual, longe de empenhar-se no aperfeiçoamento da Justiça civil, se preocupou na adoção do entendimento teórico dos seus autores acerca de institutos processuais. Veja-se, por exemplo, que, tal como o seu esboço, o projeto incluiu um título relativo à tutela de urgência e à tutela de evidência, matérias absolutamente desnecessárias, de difícil entendimento, apenas porque sobre elas versou a brilhante tese para a titularidade da cadeira de Direito Processual Civil da Faculdade de Direito da Uerj, do ilustre presidente da comissão incumbida de elaborar a nova lei.

Lamentavelmente, no Brasil, o quadro de operadores da máquina judiciária é composto, em inquietante parcela, de pessoas com dificuldade de compreender e aplicar institutos importados de países de maior cultura e tradição, como a Alemanha e a Áustria, cujas ordenações de processo civil datam, respectivamente, de 1877 e 1895.

Tal como o seu anteprojeto, o projeto extinguiu o agravo retido, ignorando a utilidade deste recurso, instituído, no sistema de direito positivo lusitano, em 1523, quando foi criado, na esteira da supplicatio romana. A admissibilidade do agravo de instrumento, limitado aos casos especificados no anteprojeto e no projeto, não funcionou, na vigência do CPC de 1939. Malogrará também no novo Código, em decorrência da precariedade da postulação e da prestação da Justiça no país. Isto levará, inevitavelmente, ao uso deturpado do mandado de segurança, desviada, então, da sua finalidade esta ação onerosa para os cofres públicos, tudo por causa da impossibilidade de se estender o agravo a casos, muitos deles teratológicos, de violação e comprometimento de direitos, ocorrentes em todo o território nacional. É também inaceitável a possibilidade de execução da sentença, antes do julgamento da apelação que a impugnar. Sem quebra do respeito aos redatores do anteprojeto e aos senadores que aprovaram o subsequente projeto, esses esboços recendem a um cientificismo oco, em muitos pontos de difícil compreensão e deficiente aplicação. Melhor seria prosseguir na tentativa de dar efetividade a institutos do atual Código, até hoje não aplicados na devida extensão, como a ação declaratória incidental, o julgamento conforme o estado do processo, o recurso adesivo, a execução por quantia certa contra devedor insolvente e certas ações especiais.

Aqui fica, por conseguinte, a sugestão aos deputados de que auscultem a comunidade jurídica nacional, particularmente os especialistas, sobre a conveniência da edição de uma lei que fatalmente trará mais problemas do que soluções.

SERGIO BERMUDES é professor de Processo Civil na PUC-RJ e advogado.