Título: Ilegalidade prorrogada
Autor: Antonelli, Leonardo Pietro
Fonte: O Globo, 23/12/2010, Opinião, p. 7

O combate à miséria, bastante discutido em fóruns mundiais, tem incentivado o Brasil a investir em políticas sociais amparadas na Constituição. Com o objetivo de arrecadar subsídios para este fim, foi criado em 2000 o fundo federal para a erradicação da pobreza e, por pressão dos governos estaduais, no mesmo ano estendeu-se a prática em favor dos estados e municípios. Segundo o texto constitucional, tais recursos têm como objetivo viabilizar a todos os brasileiros acesso a condições dignas de subsistência, e devem ser aplicados em ações suplementares de nutrição, habitação, educação, saúde, reforço de renda familiar e outros programas de relevante interesse social voltados para melhoria da qualidade de vida.

A cobrança, paga pela sociedade, é feita por um adicional de até 2% na alíquota do ICMS, sobre produtos e serviços supérfluos - a serem definidos por lei federal - para os estados, e 0,5% na alíquota do ISS para os municípios. Mas alguns problemas surgiram nesse cenário. Em primeiro lugar, de 2000 até hoje nunca houve lei federal definindo quais seriam os produtos e os serviços supérfluos, levando cada estado a legislar contraditoriamente acerca do que seria (ou não) fundamental, recaindo a tributação nada mais nada menos sobre a energia elétrica e a telecomunicação. O segundo entrave é que, apesar de o texto constitucional fixar uma alíquota máxima de 2%, os estados ignoraram o limite e editaram as suas leis majorando o valor para 5%. E, por último, há um percentual da receita adquirida com o fundo que pode ser desvinculado dessa finalidade, ou seja, um verdadeiro cheque em branco.

Foi nesse contexto de perplexidades que milhares de empresas acionaram o Poder Judiciário. E, quando tudo indicava que o fundo não seria mais cobrado, foi aprovada em 2003 uma emenda constitucional para convalidar, até 2010, todas as ilegalidades que os estados cometiam na arrecadação. Num piscar de olhos, o que era ilegal virou legal. O Supremo Tribunal Federal, em outro caso, já afastou a possibilidade de uma emenda convalidar legislação inconstitucional, mas, no caso do fundo de combate à pobreza, a cobrança continuou mantida mesmo assim, ainda sem uma posição definitiva do STF.

E, na semana passada, para ampliar esta desordem, a Assembleia Legislativa do Rio aprovou projeto de lei perpetuando a existência do fundo e das suas ilegalidades. Tributa-se sobre aquilo que se entender por serviços e produtos supérfluos, acima do limite de 2%, e ainda permite-se que parte da receita seja destinada para outro fim. A razão inconsistente encontrada para justificar a cobrança dessa forma é viabilizar a aprovação da proposta orçamentária para 2011, com previsão de R$2,5 bilhões de receitas com o fundo. O Estado do Rio sabe que a cobrança do fundo vale até o fim deste ano e que depende da aprovação do Congresso, por meio de emenda constitucional. Caso seja aprovado, certamente provocará uma nova enxurrada de ações.

LEONARDO PIETRO ANTONELLI é vice-diretor da Escola Judiciária Eleitoral (EJE-RJ).