Título: Lutar para não retroceder
Autor: Coutinho, Marcelo
Fonte: O Globo, 30/12/2010, Opinião, p. 7
Quão longe pode ir a integração econômica global? As desvalorizações do dólar costumam trazer incertezas com relação ao futuro do desenvolvimento e das relações internacionais, lançando inclusive os países uns contra os outros, numa corrida em que todos perdem. Mas também reiniciam trajetórias capazes de criar um movimento novo de crescimento nas economias industriais avançadas mediante uma maior interdependência entre as economias.
A globalização nos moldes atuais nasceu justamente de uma desvalorização cambial nos EUA no início dos anos setenta. Não obstante ter acabado com o grande compromisso de Bretton Woods, o ato unilateral de Nixon também catapultou a economia política internacional, desencadeando novos processos financeiros e comerciais numa escala sem precedentes e que transformariam para sempre o planeta a partir do fim das taxas de câmbio fixas e do controle dos fluxos de capital.
Obama não é Nixon, e tampouco os Estados Unidos são hoje o poder que representaram outrora. Também não se vive mais sob a Guerra Fria, quando existiam mais governos autoritários do que democracias. O mundo de Obama é multipolar. No entanto, o argumento do presidente democrata no presente é o mesmo do republicano no passado: a recuperação da economia americana fará bem a todos, fazendo primeiro mal a cada um. O que Obama busca é reeditar a liderança americana temperada pela cooperação dos seus parceiros.
Esse "egoísmo ético" de Washington revela um desejo de dar continuidade à integração internacional ainda ancorada na grande potência do Norte. Sendo moeda e poder duas variáveis indissociáveis, a perda do monopólio na mediação financeira das trocas econômicas globais seria a evidência maior da decadência americana. Não é a desvalorização do dólar que simboliza a derrocada do poder americano, mas uma eventual perda de centralidade da sua moeda como meio de pagamento internacional.
A ordem política no mundo está enraizada no liberalismo global, que por sua vez tem dependido de lideranças ocidentais desde o século 19, sem as quais provavelmente não seria possível estabilizar a ordem econômica multilateral e fazer girar a roda da riqueza das nações, incluindo a sua enorme desigualdade. Acontece que agora o principal motor da expansão do capitalismo fica no Oriente e ninguém parece disposto a permitir que a integração econômica global chegue tão longe a ponto de superar os interesses nacionais. A ordem no século 21 está à espera de uma nova combinação entre internacionalismo e autonomia nacional na condução dos assuntos econômicos.
O dilema está posto, e o equilíbrio da batalha cambial ainda pode passar pelo confronto comercial. Não há incentivos permanentes para as potências se abrirem e adotarem unilateralmente medidas que contribuam para a integração dos mercados. Muito pelo contrário. Iniciativas protecionistas devem ser encaradas como uma possibilidade real. As nações cooperam por longos períodos somente quando elas compartilham objetivos políticos comuns por intermédio dos quais as instituições operam de maneira mais efetiva.
Esses objetivos comuns ainda não foram reconstituídos completamente. Não se sabe nem mesmo se uma substituição futura do dólar por uma cesta de moedas resolveria de fato o problema ou se, na verdade, criaria em vez de uma, quatro ou cinco outras fontes de volatilidade. A reunião do G-20 em Seul diminuiu a pressão temporariamente, mas não resolveu a situação. A crise de governança global e as mudanças estruturais na economia vão seguir em frente, em que pese os discursos em contrário.
Sem estabilidade monetária internacional, o mundo deve crescer numa velocidade menor. Isso significa que o jogo econômico externo pode tornar a vida do Brasil mais difícil, após os anos de bonança global entre 2003 e 2008. As nossas exportações assim como os investimentos que vêm de fora para o país, perdem qualidade. Guardadas as devidas diferenças, é como se estivéssemos sofrendo efeitos opostos àqueles observados no fim de Bretton Woods.
Em 1971, a decisão de desvalorizar o dólar foi a largada de um processo que mais tarde culminaria na crise do Estado e do modelo de substituição de importações, produzindo as reformas em direção ao mercado. Já a atual desvalorização pode nos levar de volta ao desenvolvimento industrial protegido, tendo em vista os riscos de uma desindustrialização nacional, cujo impacto no emprego seria muito negativo ao longo desta e da próxima década. Há 40 anos o Brasil deixou de ser uma economia primário-exportadora e atualmente precisa lutar para não retroceder.
MARCELO COUTINHO é professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).