Título: Uma blasfêmia que paralisa o Paquistão
Autor: Bourrier, Any
Fonte: O Globo, 01/01/2011, O Mundo, p. 27

Islâmicos radicais vão às ruas por lei que prevê pena de morte a quem insultar o profeta Maomé

ISLAMABAD. Enquanto na Coreia do Norte os cristãos enfrentam o regime comunista na clandestinidade, no Paquistão o inimigo da prática livre da fé cristã é o extremismo religioso islâmico ¿ frequentemente apoiado na legislação. Nesse contexto, uma das leis mais draconianas do mundo muçulmano ¿ a Lei da Blasfêmia, que determina a pena de morte a qualquer um que insultar o profeta Maomé ¿ começou ontem a ganhar contornos políticos no país. Uma greve geral convocada por clérigos e políticos islâmicos paralisou parcialmente as maiores cidades paquistanesas diante do temor de que o premier Yousuf Raza Gilani decida suspender a controversa legislação, acusada por críticos de ser usada com frequência como instrumento para vinganças pessoais.

O comércio foi fechado em Islamabad, Lahore, Rawalpindi, Peshawar e Quetta. Em Karachi, sequer o transporte público funcionou, e a polícia teve de recorrer a bombas de gás lacrimogêneo para conter manifestantes exaltados.

¿ Não vamos permitir nenhuma mudança na Lei da Blasfêmia. Se o governo tentar fazer isso, faremos com que arrume as malas ¿ ameaçou em Quetta o clérigo Hafiz Hamdullah, líder do bloco Jamiat-e-Ulema-e-Islam (JUI), uma coligação de dezenas de partidos islâmicos, muitos deles pró-Talibã, que abandonou a coalizão há duas semanas em protesto contra a demissão de um ministro.

Os rumores de uma mudança foram provocados quando o deputado e ex-ministro da Informação, Sherry Rehman, do governista Partido do Povo do Paquistão (PPP), apresentou ao Parlamento a proposta de uma emenda ao texto da lei atual, determinando a suspensão da pena de morte e reforçando cláusulas que impeçam a chance de se cometer injustiças contra os acusados.

O premier Yousuf Raza Gilani já anunciou publicamente que a legislação não será revogada ou mesmo alterada ¿ o que lhe traz outro problema: dois ministros do liberal Movimento Muttahida Qaumi (MQM), segundo maior partido da coalizão, renunciaram nesta semana e a legenda ameaça retirar seu apoio ao governo.

Tentando evitar uma escalada iminente da crise, o ministro dos Assuntos Religiosos, Syed Khurshid Shah, ecoou o compromisso do premier.

¿ Eu declaro com toda responsabilidade que o governo não tem a intenção de acabar com a Lei da Blasfêmia. Se alguém tem algum projeto de lei secreto para isso, não tem nada a ver com o governo ¿ garantiu Shah.

A tensão religiosa acerca da Lei da Blasfêmia chegou ao epicentro das disputas políticas paquistanesas depois da condenação à morte de uma dona de casa cristã, Asia Bibi, de 45 anos, acusada em junho de 2009 de insultar o profeta Maomé ¿ um crime que, se denunciado, implica em prisão imediata até o julgamento, que no caso de Asia demorou um ano e meio. Segundo parentes, a mulher, mãe de cinco filhos, foi acusada falsamente após uma disputa por água com uma vizinha num vilarejo rural da província de Punjab. Sua família fugiu da aldeia, a cerca de 90 quilômetros de Lahore, temendo represálias de vizinhos muçulmanos.

Durante as discretas comemorações do Natal no Paquistão, houve tímidos protestos pela libertação da mulher e, em Roma, até o Papa Bento XVI interferiu para salvar sua vida.

Desde 1986, o governo paquistanês já indiciou pelo menos 1.274 pessoas pelo crime de blasfêmia ¿ embora nenhuma execução tenha sido realizada, pois as penas são comutadas. Grupos de defesa dos direitos humanos, no entanto, acusam mais de 30 mortes por linchamento quando os suspeitos da heresia conseguem provar inocência e deixar a cadeia. Pelo menos 60% dos detidos são não muçulmanos, o que reforça as críticas de que a legislação serve apenas para intimidar e perseguir minorias religiosas, que representam 4% dos cerca de 170 milhões de habitantes do majoritariamente muçulmano Paquistão.

Agravado pelo pano de fundo político, no entanto, o caso de Bibi despertou uma onda de fúria religiosa e, na semana passada, um clérigo radical chegou a oferecer uma recompensa de US$5.800 a quem acabar com a vida da condenada, caso o governo não leve adiante a execução da pena capital.

Com ânimos exaltados pela controvérsia, no último dia 12 foi preso um médico da cidade de Hyderabad por violar a legislação. Segundo a polícia, Naushad Valiyani teria jogado fora o cartão de visitas de um homem chamado Mohamad ¿ mesmo nome do profeta do Islã. A ação singela teria sido denunciada por um transeunte, que acusou o médico de ofender o profeta.