Título: O filho feio do sistema
Autor:
Fonte: O Globo, 02/01/2011, Opinião, p. 6

TEMA EM DISCUSSÃO: A reforma da Lei de Execuções Penais

O crescente aumento da criminalida- de violenta no país, sobretudo nas grandes metrópoles, vem favore- cendo aexasperação do discurso punitivo que clama por maior severidade nas penas aserem impostas aos sentenciados e, sobretudo, por mais rigor nas condições da execução penal. A visão dominante na opinião pública sobre opapel da pena criminal eda questão penitenciária deriva da ideia de que a primeira deveria manter sua natureza retribu- tiva, isto é, de um castigo a ser imposto ao criminoso pelomal causado à sociedade. E de que a segunda deveria ter por base as mais duras e cruéis con- dições carcerárias, como meio eficaz de realizar aquela penitên- cia. Ao que tudo indica, o senso comum a respeito do sentido da pena e de sua execução ainda não se desvencilhou dos para- digmas morais e religiosos que dominaram o Direito Penal na Idade Média, e que encaravam o sofrimento do infrator como meio de reparação do crime e de expiação de sua culpa. Já o moderno Direito Penal, haurido de uma ordem jurídica construída sob a égide da racionalidade, tem como fim precípuo não a imposição de sofrimento ao delinquente como retribuição pelo mal come- tido, mas evitar arepetição do ato criminoso através de mecanismos de prevenção geral e especial. Apena tem, pois, oobjetivo de pre- venir novos crimes pelo seu papel intimida- tivo em relação aoutros potenciais crimino- sos e o de afirmação da norma (prevenção ge- ral). E também o de segregar o criminoso, im- pedindo-o de praticar novo delito, a par do es- forço de recuperá-lo durante o período de cumprimento da pena (prevenção especial). A experiência temdemonstrado, emtodo o mundo, que oefeito inibidor da pena em re-

ação ao crime não reside na sua exacerbação, mas na rápida resposta do sistema quando ti- ver de aplicá-la. Por outrolado, mecanismos demitigação calibrada do rigor carcerário, co- mo o da progressão do regime, ao lado de pro- gramas específicos, têm funcionado eficaz- mente para a distensão do ambiente prisional e a criação de condições mais adequadas pa- ra o trabalho de recuperação do apenado. É claro que existemindivíduos, a tal ponto com- prometidos com as facções e quadrilhas de criminosos, que dificilmente responderiam positivamente às oportunidades oferecidas pelos institutos despenalizadores, como o li- vramento condicional e a passagem para re- gimes carcerários menos rigo- rosos. Ea prática tem indicado que, no último caso, alguns de- les se aproveitam do benefício das saídas autorizadas para não mais voltar àprisão. A questão a ser elucidada é se tais ocorrências, relativamente isoladas, desacreditariam as políticas destinadas a oferecer essa segunda oportunidade ao condenado. Acreditamos que não, embora do ponto de vista midiático e da opinião pública a fuga de um famigerado delin- quente, aproveitando-se da concessão do re- gime semiaberto, tenha uma repercussão muito maior do que os eventuais avanços ob- tidos, em termos de reinserção social, com o restante da massa carcerária. Éclaro que há umlongo trabalho anterior a ser realizado nas prisões para preparar ¿ e avaliar ¿ os can- didatos ao benefício da progressão de regime, para que se possa extrair o máximo proveito da medida. E para oêxito de tais programas faz-se imprescindível que, antes de tudo, o Es- tado recupere o pleno controle das prisões, boa parte delas hoje dominada pelas lideran- ças das facções criminosas. JOSÉ CARLOS TÓRTIMA é advogado