Título: Mudanças inadiáveis
Autor:
Fonte: O Globo, 02/01/2011, Opinião, p. 6

TEMA EM DISCUSSÃO: A reforma da Lei de Execuções Penais

Um sistema penitenciário se organi- za com o pressuposto de que a pri- são éum instrumento do Estado para inibir afrontas desferidas à margem da lei contra asociedade, e fazer aqueles que se bandeiampara amarginalida- de expiarem seus atos. A este princípio se junta a obrigação do poder público de, uma vez tendo recolhido um sentenciado aum presídio, oferecer ao preso condições de, cumprida a sentença, poder se reintegrar à vida normal. Isso se faz com programas de reabilitação e, uma vez comprovado que ao ato criminoso sobreveio o sincero interesse do detento de retomar a vida dentro da lei, a adequação da legislação carce- rária à perspectiva de redução de penas. Num país como o Brasil, em que o sistema penal está longe de obter índices significativos de reabilitação social, seja pe- las péssimas condições das prisões, seja pela leniência de autoridades que se dobram ao poder de facções do crime or- ganizado dentro do sistema, a chamadaprogressão de pena deveriaser um dispositivo de salvaguarda da dignidade do criminoso eventual ¿ aquele que cometeu algum desvio social, mas, acertada parte das contas coma Justiça, temtodas as con- dições de recuperar seus direitos na cida- dania. É justo e socialmente recomendável, portanto, que lhe seja antecipada a chance de mostrar que está reabilitado. Isto, num mundo ideal. Mas não é oque acontece no mundo real em que a crimina- lidade chegou a umnível emque do lado de fora dos presídios ameaça os cidadãos de beme, do portão da cadeia para dentro, im- põe a lei do mais forte. O que se tem visto, com perigosa rotina, é aadoção de dispo- sitivos como os regimes de prisão aberta e semiaberta, ou da liberdade condicional,

em benefício de perigosos bandidos. Uma vez abertas as portas das cadeias, antes mesmo de terem zerado seu contencioso penal, tais criminosos invariavelmente re- tomam seus ¿negócios¿ no tráfico ou em grupos paramilitares. São inúmeros os exemplos de bandidos de alta periculosidade, autores de crimes hediondos comprovadamente sem qual- quer evidência de reabilitação social, que, sob o benefício de um dispositivo legal equivocadamente aplicado, saíram da ca- deia e logo estavam de volta ao noticiário policial. O caso mais recente é odotrafi- cante Zeu, um dos algozes do jornalista Tim Lopes, que, solto, desfila-

va armado com desenvoltura e exercia seu poder alta hie- rarquia do crime organizado no Complexo do Alemão, até ser novamentepreso na ope- ração de retomada daquele bunker do tráfico do Rio. Não é o caso, obviamente, de simplesmente negar acri- minosos de baixa periculosi- dade a chance de lhe anteci- par aliberdade. Mas há uma clara distorção nos métodos e nos critérios em curso dentro do sistema penitenciário para a concessão da progressão de pena. Disso decorre que há uma imperiosa necessidade de que a Lei de Execuções Penais seja revista, e tornada mais rígida nos casos em que for confron- tada como prontuário de bandidos que cla- ramente não querem abandonar ocrime. Como obviamente amesma lei não pode ser interpretada de forma diferente, deve- se proceder aestudos que permitam ex- cluir desse benefício aqueles que insistem em ser permanente ameaça à sociedade ¿ este, sim, ocritério que deve estar no fun- damento de qualquer legislação que vise a proteger aqueles que se guiem pelo respei- to à lei.