Título: Lula: Tenho muita coisa para fazer neste país
Autor: Scofield Jr., Gilberto
Fonte: O Globo, 03/01/2011, O País, p. 9

NOVO GOVERNO

Ex-presidente é recebido com festa em São Bernardo, diz que vai tirar uns 20 dias de férias e que continuará na política

SÃO BERNARDO DO CAMPO (SP). Em seu primeiro pronunciamento como ex-presidente, Luiz Inácio Lula da Silva subiu anteontem, às 23h, num palco montado em frente ao condomínio em que mora, em São Bernardo, para, diante de cerca de mil pessoas, defender e pedir apoio ao governo da presidente Dilma Rousseff com um discurso que se assemelhou a um libelo feminista. Sem modéstias, enalteceu seu governo, seus índices de popularidade e disse "voltar para casa com a cabeça erguida e com a sensação de dever cumprido", apesar do preconceito das elites políticas que ele diz ter enfrentado por conta de suas origens humildes.

Visivelmente cansado por causa da maratona da posse, Lula falou durante cerca de dez minutos na festa, organizada pelo Diretório Municipal do PT e pela Prefeitura de São Bernardo, ocupada pelo petista Luiz Marinho, companheiro de sindicalismo. A garoa e o vento frio não esfriaram o ânimo dos presentes, que sacudiam bandeiras e gritavam o nome de Lula a cada frase do ex-presidente, especialmente no momento em que ele disse que nem de longe pensa em se afastar da política.

- Depois de oito anos na Presidência da República, acho que é justo que Marisa e eu tiremos uns dias de férias. Quero descansar por pelo menos 20 dias. Quero colocar a cabeça no lugar para começar a pensar no que vou fazer neste país. Estejam certos de uma coisa: o fato de eu ter deixado a Presidência da República não significa que deixei a política. Tenho muita coisa para fazer neste país. Tenho muita coisa a fazer mundo a fora. Quero levar para a África e à América Latina as experiências bem sucedidas no Brasil. Mas quero continuar, aqui dentro do Brasil, ajudando a companheira Dilma quando ela precisar - afirmou.

Ainda na defesa do governo de Dilma, Lula lembrou o preconceito que sofreu por ser metalúrgico e pediu que a população ajude sua sucessora para que ela não sofra preconceito por ser mulher:

- Eu precisava provar algumas coisas neste país. Porque durante décadas eu fui vítima de muito preconceito. E quando eu me elegi presidente da República, estava imbuído da necessidade e da determinação de provar que um metalúrgico de São Bernardo do Campo, que tinha apenas um diploma primário e um do Senai, seria capaz de governar este país com mais qualidade e mais competência do que a elite política brasileira que tinha governado por tanto tempo. Hoje, posso voltar na frente do meu povo e dizer com muito orgulho que depois de provar que um metalúrgico tem competência, a gente consegue eleger a primeira mulher presidenta da República deste país.

Para reafirmar o seu ponto de vista, o ex-presidente lembrou que as mulheres sempre foram consideradas "cidadãs de segunda categoria" no país, e nem mesmo o trabalho doméstico era considerado um trabalho, mas uma obrigação das mulheres em casa.

- As coisas começaram a mudar. As mulheres aprenderam a levantar a cabeça, aprenderam a querer serem tratadas em igualdade de condições. As mulheres querem ter direitos, e o homem, para ser um bom homem, precisa repartir com ela os afazeres de casa. Se a mulher pode lavar um prato, o homem pode lavar um prato. (...) Se a mulher pode trocar fralda, o verdadeiro homem, aquele que ama a sua mulher, também pode trocar fralda. Não é apenas um trabalho doméstico - afirmou.

Sobrou ânimo para uma rápida brincadeira com seu status de ex-presidente. Como quando afirmou, em meio ao discurso, que quando era presidente sempre tinha um copo de água à disposição enquanto falava, mas que agora ele era obrigado a pedir água. Nesse momento, alguém lhe ofereceu um copo de caipirinha, prontamente recusado com certo constrangimento. Marisa Letícia estava bem mais entusiasmada que o marido e passou boa parte do tempo no palco gritando para conhecidos na plateia: "Voltei!".

Lula lembrou que ele sai do governo com um índice de aprovação popular maior do que quando iniciou o segundo mandato, em 2007 - 87%, hoje, comparado com 80% de expectativa positiva em 2006 -, um indicador longe de ser um embaraço para um ex-presidente. Na verdade, o momento "ex-presidente" de Lula ficou óbvio mesmo na organização do evento em si. Sem o apoio de cerimoniais, tanto a chegada de Lula a São Bernardo quanto sua saída do palco para atravessar a rua de volta até o edifício onde mora foram uma prova de força que só não descambou num tumulto maior pelo corredor humano montado pelos próprios sindicalistas e militantes petistas. Todos queriam cumprimentar ou tirar uma foto do ex-presidente em clima de histeria.

O carteiro Elenildo Albertino da Silva, 44 anos, chegou às 16h para a festa com o neto Enzo, de 2 anos. Na chuva, ele se enrolava numa bandeira do PT e estava disposto a sair somente depois do discurso de Lula:

- Foi um ótimo governo e ele fez tudo o que se esperava.

A festa, meio improvisada, teve de violeiros metalúrgicos à Orquestra de Viola Caipira de São Bernardo, que executou "Como é grande o meu amor por você", além do cantor sertanejo Sérgio Reis, que cantou "Menino da porteira", duas músicas que o ex-presidente aprecia. O ex-metalúrgico e poeta Manoelzinho Moreira declamou um poema em homenagem a Lula:

"Os metalúrgicos fizeram história/Que marcou a categoria/ A burguesia brasileira/Dona de poder e soberania/Não conseguia acreditar/Que um trabalhador o Brasil governaria".

"Agora vou poder tomar a minha cervejinha"

Em sua primeira entrevista falando como ex-presidente, Lula disse que agora poderá tomar sua "cervejinha". Gravada antes de o petista deixar a Presidência, a declaração foi exibida ontem no programa "Esquenta!", de Regina Casé, na TV Globo.

- Vou ficar muito à vontade, Zeca. Nós vamos poder tomar nossa cerveja. Ninguém vai se importar conosco tomando a nossa cervejinha - disse, dirigindo-se ao cantor Zeca Pagodinho, que estava no programa.

O petista disse que ainda não sabe o que fará depois de oito anos na Presidência:

- Você sabe que eu não sei o que fazer. É engraçado, né? Quando você ganha, você sabe o que fazer no dia seguinte, vai fazer isso, vai fazer aquilo. Você projeta as medidas provisórias que vai fazer, as leis que vai assinar, os primeiros decretos. Mas, quando você sai, você não programa nada.