Título: Exorcizar a tentação do populismo
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Fonte: O Globo, 08/01/2011, Editorial, p. 6

Consolidou-se na Constituição de 1988, marco jurídico da redemocratização, o conceito de Estado provedor. Ali fixaram-se as bases sobre as quais edificou-se todo o atual conjunto de políticas assistencialistas, assim como um modelo fiscal que estrangula a capacidade de investimento do poder público. Seja como for, e embora este conceito de hegemonia estatal tenha literalmente virado pó nos escombros do Muro de Berlim no ano seguinte, o Brasil convive com ele há mais de duas décadas, e os governos precisam manejar com um mínimo de competência para evitar o estrangulamento definitivo das contas públicas.

Reconheça-se que um país com as desigualdades do Brasil requer algum tipo de ação estatal contra a miséria. A discórdia se estabelece quando entra em questão a abrangência das políticas assistenciais.

O Bolsa Família, como se sabe, decorre da junção de vários programas criados na Era tucana - subsídio na compra do gás, pagamento a famílias em troca da manutenção de crianças na escola e visitas periódicas à rede de saúde pública. Desde José Sarney, o primeiro presidente civil acabada a ditadura militar, amplia-se a fatia do Orçamento público voltada para o social. A União foi convertida num gigantesco guichê de pagamento de pessoas: em 2009, quase 80% das suas despesas não financeiras tiveram este caráter. Seja para remunerar servidores, pensionistas, cliente do Bolsa Família e segurados da Previdência.

Mas foi nos últimos oitos anos que estes gastos mais cresceram - via Bolsa Família e pelo impacto do salário mínimo sobre benefícios previdenciários de cunho assistencial. O Bolsa Família é emblemático: atendia 3,6 milhões de famílias em 2003, multiplicadas para 11,4 milhões, às quais deve-se somar mais um milhão. A conta, que era de R$3,3 bilhões em 2004, chegou a mais de R$11 bilhões, e ainda aumentará com a ampliação do programa. Hoje, se considerarmos os dependentes, 50 milhões de pessoas, numa população de 190 milhões de habitantes, dependem de alguma maneira dos repasses do programa.

É óbvio que já passou da hora de, de fato, serem abertas as tais "portas de saída", para que, por meio de treinamento e educação, beneficiários do Bolsa Família possam viver do seu trabalho. E o momento é propício, pois a economia cresce e as taxas de desemprego são as mais baixas desde que o mercado de trabalho começou a ser pesquisado - índices abaixo de 6%.

É animador, portanto, que, em conjunto com o Programa de Erradicação da Extrema Pobreza - nome até segunda ordem -, anunciado depois da primeira reunião do ministério de Dilma Rousseff, na quinta-feira, o governo, afinal, venha a tratar da emancipação de beneficiários do Bolsa Família. "Não vamos atacar a agenda da extrema pobreza somente com transferência de renda", esclareceu a ministra do Desenvolvimento Social, Tereza Campello.

Enquanto se fecha o foco sobre os realmente miseráveis, libertam-se famílias da tutela castradora do Estado. O risco está na tentação do populismo, na possibilidade de o Bolsa Família continuar a servir preferencialmente como arregimentador de votos. O grande poder eleitoreiro do assistencialismo, demonstrado nas eleições de 2006 e 2010, conspira contra as boas intenções dos governantes.