Título: Violência e paralisia dominam o Haiti um ano após terremoto
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Fonte: O Globo, 07/01/2011, O Mundo, p. 31

Um milhão de desabrigados e somente 5% dos escombros retirados refletem lentidão na reconstrução

PORTO PRÍNCIPE

Às vésperas do primeiro aniversário do terremoto que devastou o Haiti, o país mais pobre da América Latina ainda vive num cenário de desolação, com cerca de um milhão de pessoas desabrigadas, menos de 5% dos escombros retirados e apenas 15% das casas provisórias construídas, segundo um relatório da respeitada organização internacional Oxfam. Para agravar o panorama, relatos de violência nos campos de refugiados vêm se tornando cada vez mais frequentes, e um crescimento do número de estupros nas regiões mais afetadas pelo tremor foi detectado pela Anistia Internacional. Nos últimos dias, a sensação de insegurança é ainda maior, já que o país ainda não conhece o resultado da eleição presidencial realizada em novembro - cujo segundo turno foi novamente adiado e deve ocorrer agora apenas em fevereiro.

- Nunca imaginei que, um ano depois, estaríamos vivendo nessa miséria - desabafou Micheline Michel, que vive numa barraca na capital.

Apesar de admitir que a recuperação de desastres pode ser lenta mesmo em países desenvolvidos - como nos EUA após a passagem do furacão Katrina, por exemplo - a Oxfam afirma que, no caso do Haiti, a reconstrução está praticamente paralisada, devido à ausência de liderança do governo local e da comunidade internacional.

A falta de dinheiro é também parte do problema. Após a tragédia - que matou cerca de 250 mil pessoas e deixou outras milhares feridas - foram prometidos US$2,1 bilhões ao Haiti por diversos países, mas a ONU revela que menos de 45% do valor foi realmente liberado até o momento.

Nos campos, tiros e ataques noturnos

Além disso, segundo a Oxfam, a soma gasta foi, em muitos casos, mal empregada. Enquanto o dinheiro para a construção de abrigos temporários foi repassado, quase nada foi alocado para a retirada de escombros, após a tragédia que destruiu 105 mil casas e danificou outras 208 mil, deixando um total de 20 milhões de metros cúbicos de entulho - quantidade suficiente para encher caminhões que, alinhados, dariam meia volta ao mundo.

O relatório ainda critica a atuação da Comissão Interina para a Recuperação do Haiti, presidida por Bill Clinton, e responsável por tomar algumas das principais decisões relativas às verbas arrecadadas pelo país.

- Até o momento, a comissão não pôde cumprir seu mandato. O órgão é um elemento chave para a reconstrução, e precisa sair desse atoleiro de indecisão - disse a Oxfam.

Com o país praticamente paralisado, os haitianos precisam lutar para conseguir reconstruir suas vidas, como mostram os seis depoimentos (ao lado), recolhidos pelos jornalistas Deborah Sontag, Damon Winter e Jeffery Delviscio, do "New York Times". A situação torna-se ainda mais dramática devido à violência crescente que toma os campos. Um relatório divulgado pela Anistia Internacional mostra que mulheres e meninas vivendo em acampamentos improvisados correm um risco cada vez maior de sofrerem violência sexual. A organização registrou mais de 250 casos de estupro nos primeiros 150 dias após o terremoto. Um ano depois, ainda chegam, diariamente, vítimas desse tipo de crime no escritório de um grupo local de apoio a mulheres. Para o pesquisador da Anistia no Haiti Gerardo Ducos, "houve um colapso completo dos já frágeis sistemas de lei e ordem do país, com mulheres vivendo em campos inseguros e superlotados".

- Não há segurança para as mulheres e meninas nos acampamentos. As gangues armadas atacam ao seu bel prazer, com a segurança de saberem que a possibilidade de serem levadas à Justiça é ainda pequena - explica.

As mulheres e meninas ouvidas pela organização relatam o medo que sentem nos acampamentos à noite, quando o som de tiros é frequente, e grupos de bandidos atuam.

- À noite, nós não podemos dormir por causa da violência. Os estupradores não dormem nunca. Eles não param de atirar. Como minha filha foi violentada, eu a enviei ao campo. Ela tinha 13 anos... eles falaram que se eu contasse, me matariam - relata uma mulher identificada como Guerline.