Título: Um vazio legal
Autor: Grandelle, Renato
Fonte: O Globo, 07/01/2011, Ciência, p. 33

Especialistas frisam que regras não eliminam necessidade de lei sobre reprodução

Anova resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) expôs um país de contradições. O Brasil é um dos primeiros a permitir o uso de sêmen e óvulos no caso de morte de um dos parceiros, mas resiste há décadas a regulamentar o aborto. Convive com a fertilização artificial há 26 anos, embora não conte com uma lei sobre reprodução assistida. Determina a quantidade de embriões que podem ser transferidos para uma mulher, mas o governo ignora o número de clínicas de reprodução em funcionamento.

Especialistas em bioética aplaudem a iniciativa do CFM, mas reconhecem que o avanço é incompleto: faltam leis que amparem suas decisões.

- Há um vazio legislativo criminoso relacionado à essa área - lamenta Volnei Garrafa, coordenador do Programa de Pós-Graduação em Bioética da UnB e do integrante do Comitê Internacional de Bioética da Unesco. - O CFM está forçando o Legislativo e o Judiciário a se mexerem. É uma pena que o Congresso, muitas vezes, trabalhe considerando apenas visões individuais, não raro influenciadas pela religião. Por isso estamos tão atrasados em nossas resoluções sobre reprodução assistida.

Presidente da Sociedade Brasileira de Bioética (SBB), Paulo Antonio Fortes acredita que as medidas anunciadas pelo CFM podem ser fragilizadas por medidas judiciais.

- É uma pergunta em aberto: se o meio jurídico pode dar uma contribuição - destaca. - Acredito, e aqui não falo pela SBB, que ética e direito têm de se adaptar à mudança da sociedade. O CFM tentou preencher uma lacuna na lei. Agora, pode receber uma resposta, e ela vai prevalecer.

Defesa do uso de sêmen de mortos

O Conselho de Medicina surpreendeu ao permitir o uso de sêmen, óvulo e embriões de parceiros mortos - é preciso, no entanto, autorização prévia do (a) falecido (a). A medida é proibida na maioria dos países desenvolvidos, como Alemanha, Canadá, Dinamarca, Espanha, França e Noruega. A prática é permitida, e só após ordem judicial, na Austrália e em Israel. Nos EUA, é livre.

Para os detratores da iniciativa, ela viola o direito de uma criança de nascer ao lado de pai e mãe. Mas Cláudio Lorenzo, vice-presidente da SBB, considera a regulação da prática um "avanço na conquista de liberdades individuais".

- A exigência de uma autorização elimina o risco de que o filho seja usado, por exemplo, para obter uma vantagem financeira, uma herança indevida - pondera. - Não acredito que o fato de ter um dos pais mortos interfira na formação moral da criança. É a educação que vai moldar sua personalidade.

Mesmo aprovando a regulação, Lorenzo questiona por que as medidas anunciadas não contemplam igualmente as demandas da sociedade:

- O material post mortem será usado principalmente pelas classes mais abastadas. Neste assunto, somos pioneiros. Mas e o aborto, que interessa principalmente aos mais pobres, e é um grave problema de saúde pública? A maioria dos países desenvolvidos já o permite até a 12ª semana de gestação. Precisamos discutir o tema.

Quando o assunto é barriga de aluguel, o Brasil posiciona-se como a maioria da comunidade internacional. O CFM proíbe o uso comercial do útero - entre os poucos países a permití-lo estão EUA e Índia.

- O veto à barriga de aluguel dificulta o acesso de homossexuais às técnicas de reprodução assistida - admite Volnei Garrafa. - É preciso lidar com essa restrição. Sou contra a mercantilização do corpo humano.

A inseminação de óvulos só é permitida em uma mulher parente do casal homossexual - a chamada "barriga solidária".

Ao apresentar a resolução, o Conselho corroborou o veto a técnicas de redução embrionária. A medida, segundo médicos, era "eugênica". O embrião eliminado, segundo Garrafa, é sempre o mais "fraco", ou que está em posição desfavorável no útero. O controle à prática, no entanto, será difícil.

- Estou convicto de que técnicas como a sexagem, onde se escolhe o sexo do bebê, continuarão populares, ainda que à revelia da lei - critica. - O Estado não tem controle sobre as clínicas de reprodução. Nem seis anos atrás, à época da aprovação da Lei de Biossegurança, o governo federal não sabia quantos desses estabelecimentos existiam.

De acordo com o Ministério da Saúde, a contagem das clínicas é responsabilidade de entidades representativas, visto que nem todas são financiadas pelo Sistema Único de Saúde. Segundo o CFM, o país tem 180 estabelecimentos de reprodução assistida.