Título: Retratos da dor que Dilma relembra em público
Autor: Otavio, Chico
Fonte: O Globo, 09/01/2011, O País, p. 12

As histórias de Beto e Dodora, citados pela presidente como companheiros que tombaram pelo caminho

Em fevereiro, fará 40 anos que Carlos Alberto Soares de Freitas, antes de descer do ônibus na esquina da Avenida Nossa Senhora de Copacabana com Princesa Isabel, no Rio, acenou pela última vez para Sérgio Emanuel Campos. Desde então, não foi mais visto. Sua mãe, Alice, até morrer, manteve intacto o quarto do filho, dizendo que ele ficara com a chave da porta e poderia reaparecer a qualquer momento.

Reinaldo Guarany também se lembra do derradeiro aceno de Maria Auxiliadora Lara Barcelos. Foi da portaria do prédio onde moravam, na então Berlim Ocidental, na primavera de 1976. Da rua, ela gritou para que o namorado fosse à janela do quartinho se despedir, coisa que jamais fizera antes no exílio. Pouco depois, a caminho da universidade, se jogou na frente de um trem do metrô da cidade.

Nos anos sangrentos da guerra suja no Brasil, Carlos Alberto, o Beto, e Maria Auxiliadora, a Dodora, eram a mais completa tradução do "endurecer sem perder a ternura". Belos e idealistas, encarnaram a figura do guerrilheiro romântico sob a insígnia da VAR Palmares. Apesar da diferença de idade (ele era de 1939 e ela, de 1945), tinham muitos pontos em comum. Um deles sobreviveu ao tempo: a capacidade de emocionar, com a história de suas vidas, a ex-companheira e hoje presidente da República, Dilma Rousseff.

E é Dilma quem agora, com a força do cargo, poderá virar a chave da tranca que guarda os segredos do martírio de Beto, Dodora e outros nos porões do regime. Quando assumiu a candidatura, em fevereiro passado, a então ministra lembrou de ambos, que se foram "na flor da idade", assim como Iara Yavelberg, ex-companheira do capitão Carlos Lamarca - "Beto, você ia adorar estar aqui conosco", "Dodora, você está aqui, no meu coração. Mas também aqui com cada um de nós", recordou-se, emocionada, em discurso na convenção do PT.

Seis dias antes da convenção, num momento mais ameno daquele fevereiro, Dilma esteve na Passarela do Samba, onde assistiu aos desfiles do Grupo Especial. A festa tem entre seus chefões o ex-capitão do Exército Ailton Guimarães Jorge, o Capitão Guimarães, citado em depoimento de Dodora à Justiça Militar como um dos autores das violências contra ela e dois outros companheiros.

Embora Maria Auxiliadora seja nome de unidade de saúde em São Paulo, e militantes da luta armada tenham batizado os filhos como Breno, homenagem ao codinome de Carlos Alberto na clandestinidade, os dois guerrilheiros, mineiros como Dilma, não fazem parte da lista dos adversários mais famosos do regime que tombaram nos confrontos, como Carlos Lamarca, Carlos Marighella e Mario Alves.

O professor universitário Sérgio Campos, último a ver Beto, decidiu investir metade da indenização de R$100 mil que recebeu do governo, como vítima do regime, no resgate da memória do "comandante Breno". Para isso, convidou a jornalista carioca Cristina Chacel para produzir um livro sobre o personagem, a ser lançado ainda este ano.

- Quando fui anistiado, já tinha tomado a decisão de não usufruir o dinheiro. A outra metade doei para organizações de comunidades tradicionais, como indígenas, ribeirinhos e quebradoras de coco - explicou o ex-militante da VAR, preso no mesmo dia em que Beto desapareceu.

Foram poucos meses de convívio, mas suficientes para marcar a vida de Sérgio, que, na época, pertencia à dissidência do PCB e foi atraído, como outros militantes, pelo que chama de "O, pontinho", organização derivada da diáspora de militantes das Colina (organização guerrilheira nascida em Minas Gerais, da qual Dilma fazia parte), após a queda de parte de seus quadros em Belo Horizonte, em 1969.

Empenhado nas lutas políticas desde 1961, quando ingressou na Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG para cursar sociologia, Beto já era praticamente um militante veterano quando abraçou a luta armada, após passar pelo PSB e pela Polop:

- Beto era diferente dos outros porque tinha militado na política estudantil nos tempos de democracia. Talvez por isso carregava uma alegria, um otimismo, que contagiava a todos - conta a ex-presa política Maria do Carmo Brito, amiga de Carlos Alberto desde o início dos anos 1960.

Na campanha para prefeito de Belo Horizonte, Beto, Maria do Carmo e outros estudantes montaram um teatro volante para promover a candidatura de José Maria Rabêlo pelo PSB. Beto, pela aparência e carisma, fazia o papel de galã. A peça era toda cantada. Maria do Carmo não se esquece do refrão repetido sempre pelo mocinho da história, após cada fala do vilão:

- Mas eu estou aqui, olhando para vocês. Se pudesse, punha todos no xadrez. Eleitor que pensa, não se vende, não - repete, rindo.

Fim provável na Casa da Morte

Pouco se sabe sobre o destino de Beto após o desaparecimento, em 15 de fevereiro de 1971, mas, ironicamente, a hipótese mais provável atesta o seu assassinato no pior xadrez montado pela máquina da repressão: a "Casa da Morte", em Petrópolis, na qual só teria sobrevivido uma prisioneira, Inês Etienne Romeu.

Beto acabava de voltar de um congresso da VAR em Recife, quando ofereceu o aparelho em que vivia, na Rua Farme de Amoedo, para abrigar dois companheiros: Sérgio Campos e Antônio Joaquim Machado. Como Sérgio não tinha a chave, Beto combinou entregar uma cópia na noite do dia 15. Mais cedo, ambos pegaram o mesmo ônibus, em Ipanema. Carlos Alberto desceu em Copacabana, mas, por razões de segurança, não contou para onde iria.

Daí em diante, restou o depoimento de Inês Etienne à OAB, em 1979, no qual citou pelo menos dois carcereiros que teriam confirmado a passagem de Beto pela casa. Um deles fora reconhecido pela vítima, porque ambos haviam jogado basquete juntos em Belo Horizonte. O outro revelou que Beto foi morto com um tiro de misericórdia na cabeça.

Como Beto, Maria Auxiliadora Lara Barcelos também migrou para o Rio, em 1969, para reorganizar a luta armada, desarticulada pela repressão em Minas. Porém, naquele ano, ela cairia com dois companheiros, Chael Charles Schreier e Antônio Roberto Espinoza, após resistir ao cerco da polícia ao aparelho onde se escondiam, no bairro de Lins de Vasconcelos.

Levados para o quartel da Polícia do Exército, na Vila Militar, os três foram barbaramente torturados. Chael não resistiu. Dodora passou dois meses submetida a todo tipo de violência, inclusive sexual, sendo obrigada a ficar nua diante de até 15 interrogadores. Em 1971, foi banida, com outros 69 presos políticos, após o sequestro do embaixador suíço Enrico Bucher.

Logo na saída, conheceu Reinaldo Guarany, que fazia parte do grupo, e acabou se juntando a ele na jornada de exílio que começaria no Chile e passaria pela França e Bélgica antes de chegar à Alemanha, onde se mataria.

- Minha vida se divide no antes e depois dela. Eu quase a via como mãe, apesar de sermos da mesma idade. Depois que ela entrou em crise, fiz tudo para animá-la. Tinha um plano para irmos à África - lamenta até hoje Reinaldo, artista plástico e tradutor.