Título: WikiLeaks: enviado de Lula ao Haiti tachou Aristide de gângster e assassino
Autor: Farah, Tatiana
Fonte: O Globo, 14/01/2011, O Mundo, p. 26

Documentos mostram relutância do Brasil sobre Minustah

SÃO PAULO. Uma viagem ao Haiti, meses depois da misteriosa queda do ex-presidente e ex-padre de esquerda Jean-Bertrand Aristide, em fevereiro de 2004, riscou o nome do haitiano do cenário democrático para o Brasil. O emissário do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva saiu do Haiti com a impressão de que Aristide era um "gângster", cuja sombra deveria ser "exorcizada" do país, relatam telegramas da diplomacia americana divulgados ao GLOBO pelo grupo WikiLeaks.

O emissário, o assessor especial da Presidência para assuntos internacionais, Marco Aurélio Garcia, viajou ao Haiti em novembro de 2004. Segundo relato do diplomata americano Phillip Chicola em telegrama confidencial a Washington em 21 de novembro daquele ano, o assessor de Marco Aurélio, o diplomata Marcel Biato, conta que Garcia viajou com a ideia de que Aristide deveria ser considerado um dos atores no diálogo político. Mas, depois de 27 encontros com lideranças locais e internacionais no Haiti, Marco Aurélio mudou de ideia. Nas palavras de Biato, Aristide seria um "gângster", envolvido em ilegalidades e que "encomendaria assassinatos pelo celular".

"A impressão dominante" é que "Aristide é um criminoso que deveria ser processado, mas que mantém ainda uma poderosa "sombra" sobre o Haiti, que inspira tanto terror como esperanças infundadas sobre muitos". Tanto Garcia como Biato veem como "grande questão estratégica" trazer rapidamente uma nova esperança ao povo haitiano, resume o texto enviado por Chicola ao Departamento de Estado. Garcia e Biato retornaram com a forte visão de que Aristide não deveria retornar à política haitiana "sob nenhuma circunstância" e que sua "sombra sobre o país" deveria ser "exorcizada", nas palavras de Biato, segundo escreveu o diplomata americano.

Antes disso, os americanos chegaram a se preocupar com a possibilidade de o Brasil dar asilo ao ex-presidente haitiano. Em telegrama confidencial de 19 de março de 2004, a embaixadora dos EUA em Brasília, Donna Hrinak, relata conversa com a subsecretária de assuntos políticos do Ministério das Relações Exteriores, Vera Pedrosa Martins de Almeida, que negou as suposições de que o ex-presidente haitiano Jean-Bertrand Aristide tivesse pedido asilo ao Brasil.

Forças de Paz e afinidades no futebol

A opinião de Garcia torna-se um ponto forte para os americanos. Os dois países buscam, assim, neutralizar a influência política de Aristide desde a África do Sul, onde ele recebeu asilo político. Procurado pelo GLOBO, Marco Aurélio informou, por meio de sua assessoria, que só se manifestaria depois da publicação da reportagem.

Os documentos relatam ainda como se deu a parceria entre o Brasil e os EUA na operação de paz no Haiti. Os brasileiros preocupavam-se, segundo os documentos, com as críticas internas, em grande parte vindas do próprio partido do governo.

Para os americanos, a reclamação sobre o Brasil ficava por conta da demora em efetivar a operação. Donna Hrinak escreve, em 2004, sobre o "talento nativo brasileiro para ajeitar as coisas no último minuto" e Clifford Sobel tacha o Brasil, em junho de 2009, de "retardatário na área de reconstrução e estabilização, tendo sido inicialmente relutante em se envolver no Haiti".

Em 24 de agosto de 2004, o hoje chanceler Antonio Patriota encontra-se com o embaixador americano Sichan Siv, em Brasília, e com o encarregado da embaixada no Brasil, John Danilovich. Patriota conta que acabara de retornar do Haiti com Lula depois de um jogo de futebol entre os dois países. Para ele, o jogo foi um símbolo da "genuína afinidade e do diálogo" entre haitianos e brasileiros, o que, segundo Danilovich, facilitaria o trabalho da Minustah.