Título: Transição em marcha
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Fonte: O Globo, 17/01/2011, O Mundo, p. 27

Oposição acerta entrada no governo da Tunísia, enquanto partidários de ex-ditador resistem

TÚNIS

Sem garantias de que uma coalizão preencherá o vácuo deixado pela fuga do tunisiano Zine al-Abidine Ben Ali após 23 anos no poder, aliados do ex-ditador e líderes da oposição decidiram ontem que os dois principais ministérios do novo Executivo continuarão sob o comando da Reunião Constitucional Democrática (RCD), de Ben Ali. Já a oposição administrará três pastas do governo de transição, embora de menor peso. Enquanto a nação aguardava ansiosamente pelo resultado das negociações ¿ que serão anunciadas oficialmente hoje ¿ novos confrontos entre membros das forças de segurança leais ao líder deposto e o Exército assustavam moradores da capital, Túnis, e seus arredores.

Intenso tiroteio próximo a palácio

Em meio à violência e ao medo, políticos tunisianos sentaram-se durante todo o fim de semana para tentar concretizar o governo de unidade, primeiro passo antes das eleições convocadas para os próximos 60 dias. À noite, o primeiro-ministro Mohamed Ghannouchi e líderes opositores chegaram a um acordo: Najib Chebbi, fundador do Partido Democrático Progressista (PDP), ficará com o Ministério do Desenvolvimento Regional; Ahmed Ibrahim, líder do Partido Ettajdid, comandará o Ministério da Educação Superior; e Mustafa Ben Jaafar, do Partido da União pela Liberdade e pelo Trabalho, receberá o Ministério da Saúde. Já Ahmed Friaa ¿ aliado de Ben Ali e indicado pelo ditador pouco antes de sua queda na semana passada para o Ministério do Interior ¿ permanece no cargo, bem como Kamel Morjane, atual chanceler.

Horas antes de os primeiros resultados serem informados por fontes do governo, Ahmed Ibrahim confirmou os avanços nas negociações.

¿ O principal para nós é pôr fim a toda esta desordem. Estamos de acordo com vários princípios em relação ao novo governo. Continuaremos dialogando ¿ afirmou o líder do Ettajdid, principal partido da oposição.

Apesar de o domingo ter sido relativamente mais calmo que os últimos dias, intensos tiroteios foram registrados em frente ao palácio presidencial, nos arredores do Ministério do Interior e do Banco Central, e contra a sede do PDP.

¿ Há tiros vindo do palácio presidencial, intensos e contínuos ¿ relatou uma testemunha. ¿ É um barulho muito alto.

Num momento em que o Exército da Tunísia assume um papel maior na segurança do país ¿ apoiado por grande parte da população ¿ os confrontos registrados ontem tinham como principal objetivo tirar das ruas os mais linhas-duras entre os cerca de 160 mil policiais que se aproveitavam da ditadura de Ben Ali, e que são acusados de saquear e incendiar bancos, comércios, prisões e estações de transporte na capital. A ação dos soldados se estendeu a pessoas próximas ao ex-ditador. Dois ex-oficiais que faziam a segurança de Ali foram presos durante o fim de semana. O ex-chefe da segurança, Ali Seriati, foi detido por cidadãos quando tentava fugir do país pela fronteira com a Líbia. Ele também foi formalmente acusado de responsabilidade pelos abusos dos últimos dias contra tunisianos. Já o ex-ministro do Interior Rafik Belhaj Kacem está em prisão domiciliar, também acusado de fomentar a violência contra manifestantes.

Sobrinho de Ben Ali é assassinado

Enquanto tanques e soldados aumentavam sua presença nos arredores de Túnis, moradores afirmavam sentir maior segurança em relação às últimas semanas. Apesar de domingo não ser um dia útil no país, pela primeira vez em vários dias, alguns veículos comerciais, como vans e caminhonetes, foram vistos fazendo entregas.

¿ Não temos medo. Os homens protegem nossos bairros dos milicianos armados que estão lá para aterrorizar. Me sinto seguro ¿ disse um tunisiano, no dia em que o toque de recolher foi reduzido em uma hora: passou a ser aplicado das 18h às 5h.

Mesmo assim, à noite, alguns residentes voltaram a formar barricadas ¿ feitas com galhos de árvore e latões de lixo ¿ a fim de bloquear suas ruas e proteger propriedades.

¿ Nós viemos às ruas e nos vestimos de branco para nos identificarmos. Avisamos às forças de segurança do bairro que estamos aqui e que vestimos branco ¿ contou um morador.

Revoltados com a pilhagem do país cometida pelos parentes de Ben Ali ao longo dos 23 anos em que ele ficou no poder, tunisianos saquearam ontem diversas propriedades da família. Mansões do ex-ditador e de seus parentes e amigos próximos foram invadidas por multidões, que levaram pertences dos milionários.

¿ Isso me deixa triste, porque eles (Ben Ali e sua família) roubaram muito dinheiro do povo tunisiano para construir essa casa ¿ disse Priska Nufar, ao caminhar pela mansão. ¿ Ele vive no luxo e as pessoas não têm dinheiro para comida.

A violência contra a família deposta também provocou a morte do sobrinho de Leila Trabelsi, mulher de Ali e acusada pela oposição de corrupção e apropriação de bens privados e públicos. Imed Trabelsi era prefeito da cidade de La Goulette. Desde a fuga de Ben Ali para a Arábia Saudita, na sexta-feira, seu paradeiro era desconhecido. Segundo fontes do Hospital Militar de Túnis, o sobrinho da ex-primeira-dama foi atacado com uma faca e morreu na sexta-feira, sob cuidados médicos.

As manifestações foram desencadeadas após a morte de um vendedor ambulante recém-formado na universidade, que ateou fogo em si mesmo em ato desesperado ao ter o carrinho de frutas com que ganhava a vida confiscado pelas autoridades. Os protestos se estenderam a países árabes, como Marrocos, Argélia, Jordânia e Egito. Ontem, um argelino morreu após repetir a ação do tunisiano, se incendiando por não conseguir um emprego.