Título: Risco de retrocesso
Autor: Jardim , José Maria
Fonte: O Globo, 24/01/2011, Opinião, p. 7

No Brasil, a ideia de arquivo é associada, com muita frequência, à de arquivo morto. A expressão "virou arquivo" designa as pessoas que, por alguma razão, foram silenciadas por seus assassinos. "Arquivo" e "morte" são termos associados por grande parte da sociedade brasileira, especialmente aquela que mais sofre com a falta de informações relevantes para o exercício dos seus direitos. "Arquivos" têm sido "mortos" sistematicamente ao longo da história do Brasil, especialmente no e pelo Estado brasileiro.

Não por acaso, o reencontro com a democracia nos anos 80, trouxe um sopro de vitalidade inédita para nossos arquivos públicos, órgãos tradicionalmente "mortos" na estrutura da nossa administração pública.

Afinal, sem arquivos plenos de vitalidade, dinâmicos e facilmente acessíveis pela sociedade, como o Estado pode ser transparente? E, sem transparência do Estado, qual democracia almejamos construir e ampliar? Não se altera uma cultura de opacidade do Estado em apenas três décadas. A maior parte dos nossos arquivos segue socialmente invisível e ainda longe de ser agência de transparência do Estado.

Nas melhores experiências internacionais, ao contrário do que predomina no Brasil, os arquivos públicos não tratam apenas de conservar e tornar acessíveis os atos do passado. Desde a segunda metade do século passado, inicialmente nos Estados Unidos, os arquivos públicos deixaram de ser apenas depósitos de documentos, a "joia da coroa" do Estado. Investem conhecimento e tecnologia na gestão da informação governamental, antes mesmo da sua produção. Os arquivos públicos dos governos mais avançados em termos de transparência e interação social são infraestruturas governamentais de informação para o Estado e a sociedade. Trata-se de órgãos supraministeriais com múltiplas funções de apoio à gestão pública e à produção de conhecimento científico e tecnológico. São territórios da memória coletiva, cultura e cidadania.

Essa perspectiva tem orientado os caminhos do Arquivo Nacional do Brasil desde a década de 80. Talvez poucas instituições públicas brasileiras tenham passado por um processo de modernização tão intenso e em tão pouco tempo, influenciando ações semelhantes nos planos estadual e municipal.

Esse "dever de casa" encontrava limites no fato de o Arquivo Nacional ser subordinado, há décadas, ao Ministério da Justiça. Ao ser vinculado à Casa Civil da Presidência da República em 2000, o Arquivo Nacional adquiriu melhores condições - especialmente políticas e orçamentárias - para avançar num novo modelo de gestão das informações governamentais. Beneficiou-se diretamente desse novo cenário o Conselho Nacional de Arquivos, subordinado ao Arquivo Nacional, responsável pela política nacional de arquivos.

Neste sentido, é um retrocesso político, gerencial e científico reinserir o Arquivo Nacional no Ministério da Justiça. Essa inadequação seria a mesma em qualquer outro ministério, dada a abrangência de atuação da instituição em todo Executivo Federal. Por outro lado, esse destino comprometerá frontalmente a dimensão nacional do Conselho Nacional de Arquivos.

Setores diversos da sociedade brasileira, representantes do mundo acadêmico e de associações profissionais, vêm expressando seu constrangimento face a essa decisão.

Ainda que permaneça na Casa Civil da Presidência da República, são muitos os desafios a serem enfrentados pelo principal arquivo público do país para atuar plenamente na gestão das informações governamentais e torná-las acessíveis à sociedade brasileira. A política nacional de arquivos ainda está por se definir.

O Arquivo Nacional encontra-se distante do que pode e deve vir a ser, mas acumulou suficiente vitalidade para deixar de ser um "arquivo histórico" do século XIX e projetar-se como um centro de informações governamentais do século XXI.

Ao ser excluído da Casa Civil, o Arquivo da Nação protagonizará, uma vez mais, o velho e ainda insuperado drama brasileiro de periferização dos arquivos do Estado e sua inevitável invisibilidade social.

O Arquivo provavelmente não morrerá porque, de alguma forma, aprendeu a sobreviver perifericamente ao longo da sua história, mas certamente será um órgão aquém de suas transformações recentes, de suas atribuições legais e da democracia que buscamos.

JOSÉ MARIA JARDIMé professor da UNIRIO.