Título: Feridas abertas
Autor: Santoro, D. Filippo
Fonte: O Globo, 25/01/2011, Opinião, p. 7

Arealidade é mais dura do que aparece na TV e na imprensa. A destruição é dramática, como se um terremoto tivesse passado no Vale do Cuiabá, em Petrópolis, em São José do Vale do Rio Preto, Areal, em Teresópolis e Nova Friburgo. As análises mais imediatas acusam a ocupação irresponsável das encostas e a falta de planejamento urbano para a moradia de pessoas pobres que vivem em lugares de risco. É evidente, também, a agressão à natureza. Mas essas observações não nos consolam nem nos satisfazem. O drama é mais complexo, e nos coloca diante do mistério da nossa existência e da nossa fragilidade.

Durante o desastre, todas as igrejas e igrejinhas da região ficaram de pé, mesmo invadidas pela lama. É um sinal simples da cruz de Cristo que vive no meio dos homens, participando do seu sofrimento. Com efeito, Jesus entrou no abismo da morte tornando-se companheiro de todos os que perdem a vida, abrindo as portas da esperança. É preciso mesmo alguém que entre no âmago da morte e da vida para sustentar a esperança; e este é Jesus, nosso Salvador, morto e ressuscitado. ¿Nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem o presente, nem o futuro, nem as potências, nem a altura, nem a profundeza, nem outra criatura qualquer será capaz de nos separar do amor de Deus que está no Cristo Jesus, nosso Senhor (Romanos 8, 38-39).¿ Na ferida dolorosa desses dias Ele está presente como bálsamo de infinito amor, que sustenta a disponibilidade para servir e o ímpeto grandioso da solidariedade que se está manifestando nestes dias.

Visitando os sobreviventes desta região, é visível a sua fé, que sustenta a dor e acolhe a ajuda generosa de amigos e desconhecidos.

Uma igreja, perto de São José do Vale do Rio Preto, foi invadida pela água que havia chegado até o sacrário. Um jovem ministro da eucaristia foi nadando, recuperou o Santíssimo e, segurando-o com uma mão, enquanto com a outra nadava, o colocou a salvo. Junto com a graça de Deus, é necessária a nossa iniciativa de reconhecer o Senhor e de trabalhar na solidariedade com todos, sem discriminar ninguém, dando um novo sentido à normalidade da vida. O dever da reconstrução cabe a todos nós, em parceria com o Estado e os poderes públicos, para prevenir outros desastres e providenciar um planejamento urbano responsável.

Mas a ferida dos mortos, quem a curará? Exatamente esta ferida é abraçada pelo amor de Cristo, que nos ensina a deixar-nos tocar pelos fatos, a ser solidários, a anunciar a sua presença. A grande provação destes dias nos ensina a reconstruir as cidades devastadas e a retomar com um significado novo o quotidiano, especialmente depois que os holofotes forem apagados.