Título: A voz das ruas do Cairo
Autor:
Fonte: O Globo, 29/01/2011, Opinião, p. 6

A Revolução de Jasmim, que derrubou na Tunísia um dos mais longevos ditadores árabes, ecoa no Egito e em boa parte dos países da região. No Cairo e em outras cidades egípcias, grandes manifestações colocam em xeque a ditadura de quase 30 anos de Hosni Mubarak. A nação é uma das mais importantes do mundo árabe, com uma população de 83 milhões, dos quais 40% vivem com menos de dois dólares por dia, com preços de alimentos em alta, desemprego e repressão.

Na Tunísia, com quase 11 milhões de habitantes, o Exército apoiou os manifestantes, e um governo provisório foi rapidamente empossado com a missão de organizar eleições em seis meses, depois da fuga do ditador corrupto para a Arábia Saudita. A grande incógnita é como preencher o vácuo político. Os jovens que lideraram o movimento, fartos de opressão, corrupção e desemprego, estão conectados pelas ferramentas do Facebook, do Twitter. Mas carecem de organização política.

Algo semelhante acontece no Egito, mas Mubarak continua aferrado ao poder, com o apoio, até aqui, das forças de segurança. Ele adotou o toque de recolher e mobilizou o Exército para conter os manifestantes, que têm enfrentado corajosamente a repressão, em choques com centenas de feridos e alguns mortos. O governo do Cairo também tem bloqueado a internet, canal de organização dos que lutam por democracia. Ali, a oposição pelo menos tem uma cara - a de Mohammed ElBaradei, ex-chefe da Agência Internacional de Energia Atômica e Prêmio Nobel da Paz. Mas é duvidoso que, no caso de um colapso do atual governo, jovens egípcios sintam simpatia pelo diplomata, que acaba de voltar ao Cairo.

Os ventos de mudança deixam em situação delicada protagonistas como os EUA, que eram aliados do ditador tunisiano e têm em Mubarak um esteio de seus interesses no Oriente Médio. O Egito é um parceiro estratégico dos EUA na região e participa ativamente dos esforços para um acordo entre israelenses e palestinos. Washington já fala há algum tempo na necessidade de Mubarak abrir canais para que os insatisfeitos se manifestem. Mas tudo o que a Casa Branca não quer é que a Irmandade Muçulmana ocupe mais espaços e, muito menos, o governo. A Irmandade, principal movimento político-religioso egípcio, anunciou o apoio às manifestações, e certamente vai querer abocanhar um pedaço do poder (ou ele inteiro) se o ditador for derrotado.

Outro aliado americano, o presidente do Iêmen, Ali Abdullah Saleh, há 30 anos no poder, entrou na linha de fogo dos iemenitas que seguem a trilha aberta em Túnis e a efervescência nas ruas das cidades egípcias. O que está em jogo é a troca do tradicional regime ditatorial por democracias que deem ao povo voz, voto e perspectivas de melhoria de vida, respeitadas as diferenças culturais entre o mundo árabe e o Ocidente. Os jovens árabes estão demonstrando ser falso o dilema entre o ditador amigo do Ocidente e os radicais islâmicos inimigos. A alternativa está sendo criada nas ruas de Túnis, do Cairo, de Sanaa. O importante é não haver vácuo de poder que possa ser utilizado por extremistas.