Título: Mubarak muda governo, mas fica
Autor: Duarte, Fernando
Fonte: O Globo, 29/01/2011, O Mundo, p. 33
A REVOLTA DO MUNDO ÁRABE
Maior mobilização popular em 30 anos faz ditador anunciar mudanças e novo ministério
Acesso a telefone e internet é bloqueado, 24 morrem e mil se ferem em violentos confrontos
Mohamed ElBaradei e vários integrantes da Irmandade Muçulmana são detidos
Sucumbindo às pressões de quatro dias de protestos cada vez mais violentos no Egito, o presidente Hosni Mubarak rompeu o silêncio e anunciou a dissolução do governo e a nomeação de um novo Gabinete ainda hoje. Nem o bloqueio quase total das telecomunicações e da internet no território egípcio, o forte aparato de polícia e Exército e o toque de recolher imposto das 18h até as 7h (horário local) conseguiram impedir a concentração de hordas de manifestantes no Cairo, em Suez, Alexandria e em várias outras cidades. O Exército foi enviado às ruas para reforçar a repressão mas, à noite, milhares ainda desafiavam as ordens para permanecer em casa e enfrentavam as forças de segurança sob bombas de gás lacrimogêneo, balas de borracha, jatos d"água e mesmo disparos de armas de fogo, forçando uma reação tardia do presidente - quando o país já contabilizava pelo menos 24 mortes na maior mobilização popular registrada em 30 anos de ditadura.
- Pedi ao governo para renunciar e formarei um novo Gabinete. Como presidente deste país, garanto que estou protegendo a população e garantindo liberdade, desde que a lei seja respeitada. As pessoas querem mais empregos, preços mais baixos, menos pobreza. Sei que todos esses temas são necessários, e trabalho por elas todos os dias. No Egito, o poder está com o presidente - afirmou Mubarak, acrescentando que as manifestações são "parte de um plano maior para desestabilizar o Egito".
Blindados queimados e museu ameaçado
Até a noite, pelo menos 1.030 pessoas ficaram feridas em enfrentamentos na capital egípcia. Já em Suez, 13 teriam sido mortas e o número de feridos, alguns deles baleados, era de 75, segundo fontes médicas. Na cidade litorânea de Alexandria, outras seis mortes foram registradas, e organizações de direitos humanos estimam em milhares o número de detidos pela polícia secreta em todo o país - entre eles, o ex-chefe da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) e líder pró-democracia Mohamed ElBaradei, mantido em prisão domiciliar após participar de uma reza pública junto a uma mesquita no bairro de Gizé.
As manifestações começaram após as orações de sexta-feira e tiveram a adesão do maior bloco de oposição do Egito, a Irmandade Muçulmana. Durante todo o dia o acesso à internet esteve limitado e as linhas de telefone fixa e celular foram bloqueadas. Áreas vitais, como a Ponte Seis de Outubro e as praças Tahrir e Talaat Harb, foram transformadas em zonas de guerra. Numa demonstração simbólica de que não estavam dispostos a recuar, centenas de manifestantes furiosos invadiram o prédio do Ministério das Relações Exteriores e atearam fogo na sede do Partido Nacional. Democrata (PND), de Mubarak. No fim da noite, homens do batalhão de choque da polícia tiveram que recorrer a bombas de efeito moral para conter uma multidão que avançava rumo ao Parlamento.
Abalados por fortes nuvens de fumaça causadas pelas bombas de feito moral, muitos egípcios pediam ajuda a repórteres estrangeiros que circulavam em meio à confusão.
- Mostrem a eles! Mostrem a eles como funciona o regime Mubarak - pediam, referindo-se à violência da repressão.
Alguns carros particulares circulavam distribuindo cebolas para que as pessoas amenizassem os efeitos da inalação de gás. Diante de rumores de que policiais começavam a desertar em outras cidades, o Exército foi acionado e dezenas de blindados seguiram em direção ao centro do Cairo. Em alguns pontos, os militares - tradicionalmente muito respeitados - foram saudados com gritos de entusiasmo. Deixando dúvidas sobre a posição oficial das Forças Armadas, soldados faziam sinais de vitória e acenavam para a população, o que não impediu alguns confrontos. Ao longo do dia, pelo menos três carros das Forças Armadas foram apedrejados e incinerados junto à Corniche, o calçadão à beira do Rio Nilo. Muitos manifestantes tentavam, ainda, atirar os veículos nas águas.
- Vá, Mubarak! Vá! Queremos o fim deste governo - gritava a multidão.
Com os combates se alastrando pelo centro da cidade, oficiais das Forças Armadas cercaram o Museu Egípcio, temendo uma onda de saques das peças históricas. À noite, helicópteros sobrevoavam a capital e tiros eram ouvidos em diversos bairros do Cairo. Milhares ainda desafiavam as ordens para permanecer em casa e, entoando o hino nacional, exigiam a renúncia do presidente. Na Praça da Ópera, dezenas de manifestantes retornavam sangrando após os choques e muitos foram reprimidos com golpes de cassetete. Sequer a imprensa internacional foi poupada. Quatro jornalistas franceses foram detidos e um repórter da rede britânica BBC afirmou ter sido espancado com barras de aço por policiais à paisana.
Quando encurralados, os manifestantes se dissolviam e se reagrupavam rapidamente. Alguns levavam cartazes com a frase "Todos contra um". Outros atiravam sapatos e pisoteavam cartazes com a imagem do ditador.
A empresa aérea estatal EgyptAir e várias empresas aéreas ocidentais cancelaram seus voos ao Aeroporto Internacional do Cairo, pelo menos, até a manhã de hoje.