Título: Pode ser a primeira grande vitoria diplomática
Autor: Godoy, Fernanda
Fonte: O Globo, 02/02/2011, O Mundo, p. 29

Em sua 12ª visita ao Brasil, o francês Bertrand Badie, especialista em relações internacionais e conflitos, recebeu o GLOBO na Embaixada da França em Brasília. Autor de vários artigos sobre manifestações populares, Estado e legitimidade no mundo islâmico, o catedrático de Relações Internacionais da Fundação Nacional de Ciências Políticas de Paris afirma que as manifestações no mundo árabe podem se difundir pela identificação de outras sociedades que vivem sob autocracias modernizantes, gerontocracias, ou que se reconheçam na humilhação de governos duros. Ele diz ainda que os Estados Unidos serão afetados pelos tumultos na região e, por isso, já estão mudando a sua política radicalmente.

As manifestações no mundo árabe vão se espalhar?

BERTRAND BADIE: O vetor da difusão é a identificação. O fato de essas revoluções terem enfrentado regimes de mesma natureza, autocracias modernizantes consideradas invencíveis e invulneráveis, e que foram sacudidas com tanta facilidade no regime de Ben Ali (Tunísia), faz que as outras, em primeiro lugar o Egito, mas também Argélia e Iêmen, possam observar este mesmo fenômeno de identificação. A gerontocracia também deve ser considerada. A Tunísia foi dirigida ¿ o Egito ainda é ¿ por octogenários, por velhos. No mundo árabe, onde a juventude tem tanta importância, a velhice do ditador é símbolo de afastamento mais forte em relação à população. Há ainda a identidade da humilhação.

Que consequência teria sobre o processo de paz no Oriente Médio um governo no Egito menos propenso ao diálogo com Israel?

BADIE: O Egito é um vizinho, assinou um tratado de paz com Israel. Teve um papel essencial nos últimos anos de apoio a uma lógica de estabilização regional, ainda que este não seja um fenômeno neutro. Em outras palavras, o Egito ajuda Israel. O regime de Mubarak é um auxiliar da política israelense e um instrumento de legitimação da sua intransigência. O governo de Israel tem bons motivos para estar preocupado, porque, qualquer que seja a solução pós-Mubarak, certamente não lhe será tão favorável.

E os Estados Unidos?

BADIE: Também estão inquietos os Estados Unidos, que precisam dos egípcios, e, por isso, estão bem mais prudentes. O governo Obama tem por principal preocupação organizar, enquanto ainda é tempo, uma transição com o regime de Mubarak, de modo a assegurar que o seu sucessor continuará favorável à política americana e à israelense.

O que indicam as declarações recentes americanas?

BADIE: Estamos diante de uma mudança radical da política americana. A política dos neoconservadores foi de transformação forçada no mundo árabe. A intervenção americana no Iraque em 2003 é prova disso. O que vimos na Tunísia e, agora, no Egito é um novo método, a convicção americana de que é preciso levar em conta a pressão popular e que uma boa mudança é aquela acompanhada/produzida pelo povo soberano. Se os EUA conseguirem acompanhar o processo de transformação democrática nos países árabes ¿ eles o fizeram na Tunísia e, talvez, estejam prestes a fazê-lo no Egito, talvez amanhã em outro lugar ¿ esta pode vir a ser uma imagem completamente nova da diplomacia americana e, provavelmente, o início da aplicação de grandes ideias de Barack Obama expostas no Cairo e nas Nações Unidas em setembro de 2009. Pode ser a primeira grande vitória diplomática dos EUA.

El Baradei é um estrangeiro de nacionalidade egípcia ou pode ser uma liderança?

BADIE: A força da revolução tunisiana veio de ter sido sem líder, o que impôs problemas de transição constitucional enormes. Na Tunísia, tal ausência de líderes levou, de certa forma, a deixar o primeiro-ministro do Ben Ali por 12 anos fazer o trabalho. No Egito, se Mubarak cair, é necessária uma transição que não seja conduzida por um homem do antigo ditador. Baradei tem o perfil ideal.

Que desafios se impõem a Baradei?

BADIE: A grande questão é se ele é um líder de transição ou o novo líder do Egito e, de certa forma, o sucessor de (Gamal Abdel) Nasser, que representava a vontade popular. A força de Baradei é que ele se opôs aos americanos, sobretudo em sua missão no Iraque em 2003. Então, há algo que satisfaz esse desejo de nacionalismo. É um espírito independente. Tudo isso pode jogar a seu favor. Será que ele vai saber conduzir isso de maneira forte e convincente? É preciso esperar.

Como ficam os Estados Unidos no Oriente Médio?

BADIE: Paradoxalmente, será uma vitória diplomática dos Estados Unidos se este processo revolucionário vier a diminuir a pressão americana no Oriente Médio. Desde 1945, tivemos a demonstração de que a liderança americana não teve qualquer eficácia na região. Os Estados Unidos não puderam acabar com as guerras. Deram a prova da sua incapacidade de pesar na causa israelense e de moderá-la. O Oriente Médio é provavelmente o lugar mais evidente da impossibilidade de uma hegemonia americana. Chegamos ao momento da impotência da potência. Acompanhar um processo de democratização do mundo árabe sem mudar uma política que é fundamentalmente pró-Israel pode não ter efeito.

Com bom trânsito na região, o Brasil tem um papel a exercer?

BADIE: O Brasil tem um papel fundamental e vantagens sobre potências tradicionais. Pertence ao Norte e ao Sul, ao mundo desenvolvido, ao mundo rico e ao em desenvolvimento e ao sofrimento. Isso lhe dá muito mais credibilidade no Oriente Médio. Soube promover a política da inclusão. Não exclui ninguém do grande jogo das negociações. Os ocidentais falharam por conta de uma política de exclusão. Não se fala com quem não é semelhante. E, de repente, quem tem coragem de falar com todo mundo tem grandes vantagens.