Título: Egito à beira da anarquia
Autor: Duarte, Fernando
Fonte: O Globo, 30/01/2011, O Mundo, p. 40

Depois de ver os egípcios se recusarem a acatar seus pedidos para que interrompessem as manifestações contra o governo, o presidente Hosni Mubarak fez uma tentativa de barganha para tentar contornar uma crise política de tendências anárquicas: como parte da anunciada reforma do Gabinete, o país terá um vice-presidente pela primeira vez em seus 30 anos no poder. A escolha, porém, não deixa de ser polêmica. Apesar de ser uma autoridade internacionalmente respeitada, Omar Suleiman é também o homem que há 20 anos comanda a polícia secreta, uma força cujo papel no aparato repressor do regime de Mubarak é volta e meia destacado pelos críticos. Além de Mubarak, o Egito também ganhou um novo premier: o general de aviação Ahmed Shafik assumiu o posto ontem.

Os confrontos na capital já deixaram mais de 100 mortos e dois mil feridos. E, a julgar pela movimentação nas ruas do Cairo no fim da noite de ontem, a oferta de Mubarak não foi suficiente para aplacar a fúria da população. Multidões ainda marchavam pelos principais pontos da cidade ¿ cerca de 50 mil ocupavam a Praça Tahrir, no centro da capital. Todos ignoravam o toque de recolher imposto pelo governo, que ontem teve início às 16h, no horário local (meio-dia em Brasília). Dessa vez, porém, protestavam sob os olhos vigilantes, mas bastante tolerantes, do Exército, que desde a noite de sexta-feira tem forte presença no Cairo e em pontos como Suez e Alexandria. Além de lutar contra o fim do governo, a população resolveu assumir sua própria proteção, diante da onda de violência que tomou a cidade.

Líderes da UE pedem eleições

No fim da tarde, surgiram informações sobre uma tentativa de invasão do Ministério do Interior, o único dos grandes órgãos públicos egípcios que ainda não está no controle do Exército. Nas áreas periféricas da cidade, foram registrados diversos saques e arrombamentos, que, à noite, avançaram também para os bairros nobres, anteriormente protegidos pela polícia. Os moradores organizaram vigílias e, armados com paus e facões, tentavam impedir invasões em suas vizinhanças. Supostas tentativas de fugas de presos também aumentaram os temores sobre as condições de segurança da capital.

A própria Praça Tahrir ainda exibia muitos vestígios dos protestos de sexta-feira ¿ entre eles, a carcaça de um carro blindado da Guarda Presidencial. Mas, além de gritar slogans sugerindo que o presidente adotasse o exemplo do ex-líder da Tunísia, Zine El Abidine Ben Ali, e buscasse exílio na Arábia Saudita, alguns manifestantes empenharam-se em limpar as ruas, coletando uma série de detritos.

¿ Ninguém vai parar de enfrentar Mubarak, mas isso não significa que deixaremos de cuidar da cidade ¿ explicou o estudante Wahel Washar, carregando um imenso saco de lixo com pedras e cacos de vidro.

A nomeação de Suleiman tem sido interpretada como uma forma de Mubarak ganhar tempo nas negociações com os manifestantes. O novo vice-presidente, ainda que seja conhecido pela fidelidade ao atual regime, é tido, no Egito e no exterior, como uma figura capaz de contribuir para a estabilidade interna do país. Suleiman tem boas relações com autoridades de segurança dos EUA e do Oriente Médio. Em meados da década de 90, comandou a repressão ao radicalismo islâmico que assustou o país, missão ainda apreciada por uma sociedade secular.

¿ Ouvi um analista dizendo que poderia ser um passo para uma transição. Mas não vejo como Suleiman possa representar boas notícias ¿ lamentou o blogueiro Mohammed D, um dos organizadores dos protestos do Cairo, articulados via Twitter. ¿ Assim como Mubarak, Suleiman veio das Forças Armadas. Isso significa que agora teremos tanto um presidente como um vice de origens militares. Não foi uma concessão, mas uma tentativa de manter as coisas como elas estão.

Ahmed Shafik, o novo premier, também ganhou evidência nas Forças Armadas. Como piloto de combate, ele serviu em várias disputas contra Israel, inclusive a Guerra de Yom Kippur, em 1973. Em 2002, foi nomeado ministro de Aviação Civil. Até sua promoção a primeiro-ministro, era o responsável pela modernização dos aeroportos do país.

Inicialmente relutante em permitir uma repetição das cenas de euforia de sexta-feira, quando manifestantes subiram em tanques e carros blindados, o Exército, poucas horas depois, já havia retomado o relacionamento cordial com o público. Os militares receberam de lanches a cigarros e flores.

Em alguns momentos, apareciam sinais de uma possibilidade de o Exército, a exemplo do que aconteceu com a Tunísia, romper com o regime. Alguns oficiais foram carregados pelo público e um capitão foi visto gritando os mesmos slogans anti-Mubarak entoados pelos manifestantes. Comandantes das tropas usaram megafones para pedir o fim de saques e ataques a repartições do governo. No fundo, via-se a sede do Partido Democrático Nacional, a legenda governista, incendiada na noite de sexta-feira e ainda lambida por chamas.

Os pedidos de calma não inibiram slogans contra os EUA e Israel. Ontem, um voo especial para Tel Aviv deixou o Cairo com parentes de diplomatas, além de outros 40 cidadãos israelenses. Mas, entre os manifestantes, havia ressentimentos específicos contra o pronunciamento feito pelo presidente Barack Obama na madrugada de sábado. Na opinião dos revoltosos, ele não foi suficientemente contundente com o regime egípcio.

¿ Obama fez um discurso em que nada ofereceu ao povo egípcio. Ele protegeu um ditador que há 30 anos tem sido sustentado por governos americanos ¿ criticou o advogado Mahmoud El Gamal, que ostentava um esparadrapo no supercílio esquerdo, fruto de um golpe de cassetete recebido de um policial na sexta-feira. ¿ Enquanto isso, somos sufocados por bombas de gás lacrimogêneo made in USA. É isso que os americanos chamam de democracia?

O serviço de internet permanecia suspenso, mas a telefonia celular e fixa foi normalizada. A expectativa era de que a chegada do domingo, o primeiro dia útil da semana muçulmana, fizesse o governo reativar a rede, mas já se sabe que bancos e a Bolsa de Valores do Cairo não abrirão hoje. Muitos comerciantes devem seguir o exemplo.

Ontem, líderes de Reino Unido, França e Alemanha emitiram um comunicado conjunto em que pediam que Mubarak iniciasse um ¿processo de transformação¿ que abrisse caminho para eleições ¿livres e justas¿.