Título: Mubarak cede e quer diálogo com oposição
Autor: Duarte, Fernando
Fonte: O Globo, 01/02/2011, O Mundo, p. 24

A REVOLTA DO MUNDO ÁRABE

Exército promete não reprimir megaprotesto; El Baradei reúne-se com militares

Pressionado por uma greve geral convocada para hoje por sindicatos, partidos políticos e sobretudo pela Associação Nacional por Mudança - criada no ano passado pelo ex-chefe da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) e Prêmio Nobel da Paz de 2005, Mohamed ElBaradei - o Exército do Egito reconheceu, pela primeira vez, em quase 30 anos de ditadura, o direito dos egípcios à liberdade de expressão. Diante da ameaça de novos distúrbios causados pela manifestação que pretende reunir um milhão de pessoas exigindo a renúncia do coronel Hosni Mubarak, as Forças Armadas emitiram um comunicado garantindo que não recorrerão à força para reprimir os manifestantes.

Além de nomear novos ministros, Mubarak deu mais uma prova de que não pretende abandonar tão cedo a cadeira presidencial ao instruir seu novo vice-presidente, Omar Suleiman, a iniciar diálogos com todos os blocos de oposição - inclusive para discutir reformas legislativas e constitucionais. Nos bastidores, cresciam também as articulações para assegurar uma transição pacífica à democracia. Depois de costurar alianças com outras facções, Mohamed ElBaradei reuniu-se na noite de ontem com oficiais de média patente do Exército. Segundo fontes ligadas à Associação Nacional por Mudança, o líder oposicionista estaria negociando uma nova Constituição, laica, civil e democrática - o que afastaria os temores de que um governo de orientação islâmica emergisse no futuro.

Entre os novos ministros anunciados mais cedo por Mubarak, está o general Mahmoud Wagdy, ex-chefe do departamento de investigações criminais da Polícia, indicado para o Ministério do Interior - responsável pela temida polícia. Velhos aliados do presidente foram mantidos em cargos-chave como Defesa e Relações Exteriores. O ditador decidiu, ainda, afastar empresários que ditavam a política econômica liberal.

Apesar das promessas de mudanças, chegar ao megaprotesto de hoje não será fácil. Numa tentativa de impedir os manifestantes de chegar à Praça Tahrir, o sistema de trens foi suspenso por tempo indeterminado e fontes do Ministério da Informação afirmaram à CNN que os serviços de telefonia serão cortados. Desde ontem, as manifestações já não têm o regime como único alvo. Faixas e cartazes traziam também o nome de Obama e referências a Israel - cujas boas relações diplomáticas com o Egito são desaprovadas por boa parte de uma população cujas camadas mais humildes prezam pela devoção ao islamismo. Gritos de "Israel é o próximo alvo" foram ouvidos na Praça Tahrir, onde tanques do Exército já dividiam espaço com a polícia.

A atmosfera nas ruas, no entanto, era mais festiva do que tensa. Milhares de pessoas passaram a noite de domingo na praça, aquecendo-se em fogueiras, muitas dormindo nos canteiros - principalmente manifestantes que vieram de outras cidades para a capital, como o microempresário Mohammed Mohsen, de 28 anos, que ainda trazia no casaco e colchão improvisado um pouco da poeira acumulada pela utilização de um canteiro de obras como dormitório.

- Estou na cidade há quatro dias e dormi em vários lugares diferentes, mas tinha que estar aqui para dar minha contribuição.

Estrangeiros em fuga levam caos ao aeroporto

Durante o dia, houve distribuição de água, pães e frutas secas. Com grande parte do comércio fechado e a depredação de lanchonetes, vendedores ambulantes vendiam até quentinhas. Além de café, chás de gengibre eram a solução para os manifestantes batalhando contra a rouquidão de sete dias de protestos.

- Ficaremos aqui enquanto for necessário para que Mubarak vá embora - sussurrou a estudante Huda Farouk, de 23 anos.

Um sinal de maior tranquilidade era o hospital de campanha, montado numa mesquita vizinha à Praça Tahrir, praticamente vazio ontem. No fim de semana, segundo voluntários, foram atendidos mais de 50 casos de ferimentos com balas de borracha ou munição viva e pelo menos três mortes causadas por gás lacrimogêneo.

- Estamos aliviados, pois operamos no limite de nossa capacidade nos últimos dias. Nosso material, por exemplo, é todo doado por farmacêuticos - explicou a médica Rada Olfat.

Nos aeroportos, porém, as cenas de caos, com longas filas e passageiros acampando no saguão, agravaram-se com o anúncio da EgyptAir, a principal companhia do país, de cancelamento de todos os vôos entre hoje e quarta-feira. Num esforço conjunto de governos e companhias aéreas, empresas europeias como Lufthansa, Austrian Airlines e Air Berlim anunciaram o envio de aeronaves maiores que o habitual para dar conta da demanda. Segundo o Departamento de Estado dos EUA, pelo menos 220 cidadãos americanos foram retirados do Egito, e mais de 2.400 pediram ajuda para deixar o país.