Título: Reparação, sem castigo
Autor: Maia Filho, Mamede Said
Fonte: O Globo, 03/02/2011, Opinião, p. 7

O debate que envolve o projeto de criação de uma Comissão da Verdade, ora em tramitação no Congresso Nacional, tem adquirido, por vezes, um tom maniqueísta. De um lado, os que defendem a ênfase na responsabilização jurídica dos torturadores e agentes da repressão, por entender que a anistia não os isenta de serem processados e julgados. De outro, os que adotam o discurso do silêncio e da omissão, no temor de que se instaure um clima de revanchismo contra os militares, pondo em risco a reconciliação nacional.

O aspecto inicial a ser considerado é que, ainda que de forma tardia, o Brasil começou, já há algum tempo, a acertar contas com sua história recente. O primeiro grande passo se deu em 1995, com a edição da Lei nº 9.140, que permitiu o reconhecimento, pelo Estado, de sua responsabilidade no assassinato de opositores políticos. O segundo passo se deu em 2002, com a Lei nº 10.559, que criou a Comissão de Anistia, com a finalidade de proporcionar indenizações aos anistiados. Tais iniciativas demonstram que, no plano da responsabilidade administrativa e civil, muito já foi feito, e que o País não se manteve inerte em face das ações repressivas que, de 1964 a 1985, redundaram em duas centenas de mortos e desaparecidos, 130 banimentos, 4.862 cassações de mandatos e direitos políticos, 10 mil cidadãos exilados, 6.592 militares punidos, 245 estudantes expulsos da universidade.

A proposta da Comissão da Verdade permite consolidar esse processo, com uma reparação de ordem política e moral que proporcionará o completo esclarecimento dos casos de torturas, mortes e desaparecimentos forçados, e a identificação das estruturas que envolviam o aparato repressor.

A reconciliação nacional, objetivo básico de todo processo de transição, não se constrói com atitudes de conivência com o passado, nem com sentimentos de desforra em relação ao agressor. Mais importante que a responsabilização individual dos agentes da repressão é a completa revelação do que ocorreu. Por isso mesmo, é salutar que o projeto preveja que "as atividades da Comissão Nacional da Verdade não terão caráter jurisdicional ou persecutório".

O conhecimento do passado é um direito de caráter coletivo, que é parte de um mais amplo direito à justiça. Aos que argumentam que a Lei de Anistia não permite que se investigue os malfeitos da ditadura, há de se ter claro que anistia não significa esquecimento. A consciência jurídica internacional repudia a ideia de anistias incondicionais, que buscam proibir investigações e ignorar os direitos das vítimas. Por isso mesmo, os processos de anistia sempre foram mais bem desenvolvidos quando acompanhados de mecanismos que permitiram a elucidação pública dos fatos.

O direito à verdade e à memória guarda estreita conexão com as ideias que sustentam o estado constitucional democrático. Como diz a pensadora argentina Beatriz Sarlo, os atos de memória são um modo de reconstrução do passado sem o qual não é possível construir um presente promissor. Não há como negar que o campo da memória é um campo de conflitos, mas somente nele será possível sustentar o "nunca mais" não como algo que deixa para trás o passado, mas como uma decisão de evitar, relembrando, os acontecimentos traumáticos.

A geração de 1968, que enfrentou com sua juventude, e mesmo suas vidas, a ditadura, encontra-se no poder no Brasil, tendo nele chegado pela via democrática. Pela primeira vez, assume o cargo máximo do País uma mulher que foi presa e torturada pelo regime de 64. Por isso, não há de se querer que o governo seja complacente com as tentativas de subtração da memória e de celebração do esquecimento como uma estratégia que é incapaz de superar o passado e de promover uma verdadeira reconciliação no presente.

A Comissão da Verdade é uma excelente oportunidade para que, como dizia a poeta sul-africana Antjie Krog, a herança desse passado sombrio seja tratada a partir de uma necessidade de compreensão, e não de vingança, uma necessidade de reparação, e não de castigo.

MAMEDE SAID MAIA FILHOé professor da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília.