Título: O alcance do reajuste do salário mínimo
Autor:
Fonte: O Globo, 04/02/2011, Opinião, p. 4

Ao decidir fazer ela mesma a leitura da mensagem do Executivo ao Congresso, no início de mais um ano legislativo, coincidente com a instalação da 54ª legislatura, a presidente Dilma Rousseff deu pompa a um ritual que costuma ser burocrático. Não chegou a ser um pronunciamento tão aguardado como o do "State of the Union", em que o presidente americano comparece ao Capitólio, no início do ano, para falar sobre o que pretende fazer e dos problemas que o preocupam, mas a presença de Dilma elevou o status da mensagem.

Não houve novidades. Mesmo a proposta do "pacto" pelo avanço social pode ser entendida como uma embalagem diferente de um discurso já conhecido, e que não divide a sociedade. Ao contrário, não há discordância quanto à necessidade de se continuar a reduzir a pobreza no país, processo iniciado em 1994, quando o Plano Real estabilizou a moeda. A discussão é travada em torno dos instrumentos e da gradação no seu uso para se alcançar este objetivo.

Sem surpresas, o pronunciamento serviu para Dilma realçar temas que considera prioritários, entre eles o do reajuste do salário mínimo, de fato um assunto crucial para o futuro de um governo com pouco mais de um mês de existência. Mesmo antes da posse, a presidente já recebia pressões de corporações sindicais para rasgar a regra de reajuste adotada pelo governo em acordo com estas mesmas corporações e conceder um aumento fora de propósito. Segundo a regra, o percentual do aumento é obtido pela soma da inflação com a taxa de crescimento do PIB de dois anos anteriores. Ora, como há dois anos o PIB caiu - ligeiramente, mas caiu -, o índice tem de ser o da inflação. Sindicatos querem virar a mesa para obter algo mais. Acertadamente, a presidente rejeita a proposta - salário tem de ter relação com produtividade econômica - e, na quarta-feira, aproveitou para anunciar o envio ao Congresso de um projeto para de vez estabelecer em lei uma fórmula de aumento do salário mínimo.

Atropelar a regra atual, mesmo que não esteja em lei, significa criar um clima de insegurança desnecessário diante do futuro. Se o governo aceita transformar em letra morta uma fórmula negociada exaustivamente, só para atender a corporações, que outras concessões perigosas poderá fazer no futuro? O choque em torno do reajuste do mínimo ganha ainda mais contornos políticos, de teste do governo Dilma, diante do fato de que a política de recuperação do salário mínimo - adotada nos últimos 16 anos - já fez a remuneração básica ter um dos mais elevados poderes aquisitivos da História. E além disso, pela regra atual, se o aumento de 2011 é o da reposição da perda pela inflação, o de 2012 será substancialmente maior, pelo fato de o PIB em 2010 haver crescido mais de 7%. É necessário mesmo cuidado com este reajuste, pois o seu impacto sobre as contas previdenciárias - em déficit crescente - é direto. Por isso, o assunto não pode ser decidido em função de visões corporativistas sindicais, embora, do ponto de vista político, entenda-se que os governos devam considerá-las. Mas, se forem administrar o país apenas em função delas, terminarão até mesmo agravando a má distribuição de renda, porque estas categorias sindicais representam os setores mais organizados da sociedade e menos desamparados. Ceder neste embate pode, no futuro, comprometer inclusive programas assistenciais.