Título: A Comuna de Tahrir
Autor: Duarte, Fernando
Fonte: O Globo, 06/02/2011, O Mundo, p. 46

Na praça que virou epicentro das manifestações, egípcios sonham com a democracia

CAIRO. Mais do que uma pedra no sapato do regime egípcio, a multidão que há mais de uma semana ocupa a Praça Tahrir transformou-se num experimento social, um enclave libertário em meio à ditadura. Construída como parte dos esforços de embelezamento europeizado do Egito colonial, no século XIX, o local agora lembra ¿ ainda que com licença poética ¿ os movimentos pelo qual o Velho Mundo passou na mesma época, como a Comuna de Paris. Ainda mais por ter como uma das principais missões a defesa contra uma invasão de espaço e princípios.

O apelido de República de Tahrir (libertação, em árabe) quase não soa como exagero: desde que os números de manifestantes nos lados opostos a Hosni Mubarak aumentaram nas ruas do Cairo, entrar na praça requer carteira de identidade ou passaporte. Cruza-se realmente uma fronteira. Entra-se em 46 mil metros quadrados de um Egito que o ditador não consegue mais comandar, por mais que os esforços de seus correligionários ¿ com uma mãozinha do aparelho repressor do Estado ¿ tenham surrado corpos e espíritos.

¿ Tahrir é um exemplo de como os protestos podem até ter começado com a articulação de uma classe média hábil, com o uso de ferramentas de mídia social, mas o que encontro aqui é um microcosmo de como todos nós que gostamos de democracia queríamos ver a sociedade egípcia ¿ diz Iman Mosharafa, uma professora universitária que nos últimos dias tem dividido espaço, num dos canteiros de Tahrir, com compatriotas que veem na ocupação da praça uma questão que desafia dificuldades logísticas.

Por dificuldades entenda-se não apenas o improviso na hora de dormir: Tahrir tem condições precárias no dia a dia. A começar pelo fato de que a batalha entre os oposicionistas e a polícia egípcia pelo controle inicial da praça, em 28 de janeiro, teve como efeito colateral a depredação ou o fechamento de bares e restaurantes ¿ dificultando ainda mais a tarefa de alimentar a multidão. Ambulantes por si só não são suficientes, sobretudo nesses dias em que arapongas e milícias pró-Mubarak vivem à espreita.

¿ Trazer comida e água para a praça tem ficado cada vez mais difícil. O Exército protege as entradas, mas os manifestantes pró-governo assustam muitos voluntários ¿ explica o estudante Mandi Mourad, de 21 anos, enquanto distribui sanduíches a companheiros de vigília e batalha.

Por sonho de sociedade, Iman Mosharafa se refere à presença de egípcios de várias origens e situações, por mais que o de berço humilde componha a maioria dos moradores. No plano religioso, cristãos e muçulmanos coexistem numa harmonia que não se repete do lado de fora. Na praça, manifestantes revezam-se em turnos para atividades corriqueiras, como limpeza ou segurança, incluindo a prisão improvisada numa estação de metrô para onde são levados inimigos ou policiais à paisana capturados no enclave.

Tahrir tem inspirado o resto do país: relatos são de que suprimentos chegam de todas as partes.

¿ Sem a ajuda do público, estaríamos num estado de calamidade para atender aos feridos ¿ conta Kamal Abossona, um dos médicos que vêm trabalhando no salão de uma mesquita vizinha.

Cercada por símbolos do bem e do mal, como o Museu Egípcio e o que sobrou da sede do Partido Nacional Democrático, Tahrir até janeiro de 2011 tinha mais significado para os egípcios por ter servido de celebrações para o golpe militar que derrubou o rei Farouk, em 1952. Seus ocupantes agora podem conquistar fama global se conseguirem contribuir para a remoção de um presidente de pretensões monárquicas.

¿ Quando tudo isso acabar, Tahrir será a razão pela qual turistas passarão a vir ao Cairo ¿ diz o blogueiro conhecido como SandMonkey.

O clima de esperança, no entanto, não comove os militares que, há dias, observam a movimentação. Ontem, oficiais do Exército usavam altofalantes para tentar convencer o público a dispersar. Tanques começavam a se posicionar com o objetivo de liberar o tráfego de veículos nas vias da região até hoje ¿ quando os bancos estão programados para reabrirem. (F.D)