Título: Treinamento para a guerra midiática
Autor: Duarte, Fernando
Fonte: O Globo, 09/02/2011, O Mundo, p. 27

Ativistas recorrem às câmeras para registrar abusos, e governo contra-ataca nas redes sociais

CAIRO. Hesham chega sorrateiro, usando a multidão que faz fila para a revista de segurança numa das barreiras militares como cobertura. Rapidamente entrega o envelope e se despede. No DVD, por ele editado, com notas e descrições, estão vídeos amadores das manifestações contra o presidente Hosni Mubarak, aparentemente feitos com a câmera de um celular, mas caprichadas. Não se sabe sequer se Hesham é seu nome verdadeiro, mas o rápido encontro no centro da capital egípcia parece reforçar a hipótese de que a agilidade dos manifestantes vai além da destreza no uso da internet.

Na verdade, as duas semanas de queda-de-braço com o governo do Egito são a primeira missão de uma guerrilha high tech diante dos olhos do mundo. Nas eleições parlamentares do ano passado, ativistas já tinham conseguido driblar os olhos vigilantes do governo com uma série de ações que não apenas contavam com o apoio de mídias sociais mas incluíam o uso de militantes treinados para capturar os acontecimentos com precisão.

Tudo sob a coordenação do Movimento Jovem 6 de Abril, dissidência do Kefaya (basta, em árabe), que pegou emprestada a data de um protesto sindical na cidade de Mahalla el-Kubra ¿ conhecida por sua indústria têxtil ¿ duramente reprimido pela polícia egípcia. Mas que também se inspirou na Revolução Verde, o nome dado aos protestos que em 2009 tomaram o Irã para questionar a vitória suspeita de Mahmoud Ahmadinejad nas eleições presidenciais. Houve contribuições até de movimentos anarquistas europeus para a elaboração de uma cartilha circulada online, debaixo das barbas da polícia secreta de Mubarak.

¿ O governo egípcio subestimou o poder de mobilização dos ativistas porque vivemos num país em que a maioria da população é pobre e há uma imensa exclusão digital, com 60 dos 80 milhões de habitantes sem acesso à internet. Quando as autoridades perceberam que isso não significava impossibilidade de circulação de informações, já era tarde demais ¿ explica Iman Mosharafa, professora da Faculdade de Comunicação da Universidade do Cairo.

Mesmo a tática de suspender os serviços de internet e telefonia celular no auge dos protestos pareceu ter criado mais problemas para os jornalistas do que para os ativistas. Isso porque o 6 de Abril tinha um plano B, como o uso de servidores alternativos para acessar a rede e linhas telefônicas internacionais para enviar mensagens de texto. Cortesia do treinamento recebido nos EUA de ONGs especializadas em ativismo multimídia. Segundo Maryam Ishani, do ¿Journalist Connection¿, site especializado na veiculação de conteúdo amador em zonas de conflito, os contatos incluíram viagens aos EUA para workshops em produção televisiva e cinematográfica.

Visitas na outra direção também teriam ocorrido para treinar mais ativistas em técnicas de fuga e mesmo de descarte de informações valiosas em casos de detenção iminente. Sendo assim, a visão de ¿Hesham¿ sumindo tão rápido quando chegou já não parece surreal. Por email, ele se recusa a entrar em detalhes sobre suas afiliações:

¿ Mas sinta-se à vontade para usar os vídeos. Há muito mais de onde eles saíram.

O governo Mubarak não está alheio à movimentação tecnológica. Se a postura inicial do governo foi ignorar ou censurar sites como o Facebook, a história mudou nos últimos dias, depois do restabelecimento dos serviços de internet no país. Um grande número de comunidades exaltando o presidente do Egito surgiu no site de relacionamentos, e ainda que a grande maioria não contasse com mais do que algumas centenas de membros, pelo menos uma, ¿President Mohamed Hosny Mubarak¿, ontem tinha mais de 22 mil adesões.

O contra-ataque pró-governo continha também pelo menos uma página criticando um dos principais nomes da oposição, o Prêmio Nobel da Paz Mohamed ElBaradei. Integrantes do grupo, com apenas 290 adesões, reclamavam do que viam como falta de patriotismo nas críticas de ElBaradei à mídia estrangeira sobre o regime egípcio.

Os defensores do regime também vêm se valendo de táticas de interferência no terreno cibernético da oposição: páginas no Facebook e tópicos populares no Twitter foram invadidos, quase sempre com linguagem agressiva para descrever os manifestantes da oposição. Falsos administradores tentavam cancelar convites para protestos e, no microblog, também surgiram várias novas contas pró-Mubarak. (F.D.)