Título: Da internet a herói da Praça Tahrir
Autor: Duarte, Fernando
Fonte: O Globo, 09/02/2011, O Mundo, p. 27

A REVOLTA DO MUNDO ÁRABE

Após ser preso e vendado, executivo do Google reacende manifestações. Governo anuncia cronograma de transição

Na guerra de desgaste contra os manifestantes da oposição que há duas semanas estão nas ruas do Cairo e de outras regiões do país, o governo do Egito voltou a anunciar medidas de democratização - mais especificamente a formação de comitês independentes para estudar reformas constitucionais. No entanto, o movimento de contestação ao presidente Hosni Mubarak pareceu ter ganhado fôlego por conta de um novo e inédito herói: Wael Ghonim, um executivo do Google por trás da organização cibernética dos protestos, que passou 12 dias detido, vendado e algemado, pelas forças de segurança. Ontem, o egípcio atraiu centenas de milhares de pessoas numa das mais numerosas manifestações já realizadas na Praça Tahrir.

Ghonim foi libertado na segunda-feira e, no Facebook, mais de 130 mil pessoas entraram numa página defendendo sua eleição informal como "o porta-voz" do levante. Depois de chorar numa entrevista à TV egípcia, ele discursou para a multidão na praça, reafirmando a intenção dos manifestantes de não interromper a ocupação do local enquanto Mubarak insistir em permanecer no poder. Ghonim ganhou notoriedade ao mobilizar milhares com a criação de uma comunidade no Facebook em homenagem a Khaled Said, um jovem assassinado no ano passado por policiais na cidade de Alexandria - segundo testemunhas, após recusar-se a dar propina para os agentes. O executivo fez ainda um tributo emocionado às vítimas fatais dos protestos, que segundo a ONU e ONGs de defesa dos direitos humanos já teriam chegado a pelo menos 300 desde 25 de janeiro, quando os egípcios foram às ruas - das quais 230 mortes somente no Cairo.

- Este país é o nosso país. Todos temos direito a uma voz. Não vamos abandonar nossa reivindicação, que é a saída do regime. Não sou um herói. Heróis são os que foram martirizados - disse Ghonim, para o delírio da multidão na Tahrir.

Além do Cairo, houve mais protestos em outras regiões do país, com destaque para a convocação de uma greve de trabalhadores portuários nas cidades de Suez, Ismailia e Port Said. Há informações de que pelo menos seis mil empregados farão piquetes hoje, reivindicando maiores salários e melhores condições de trabalho - menos de 24 horas depois de o governo ter anunciado um aumento de 15% para o funcionalismo público, que não se aplica à maioria da população egípcia, em especial à grande parcela na economia informal.

Pela manhã, o vice-presidente Omar Suleiman, que se transformou no principal interlocutor de Mubarak com a oposição, anunciara a formação dos comitês independentes - que além de discutir reformas como mandatos presidenciais fixos e o fim do estado de emergência que há 30 anos dá poderes absolutos à polícia e ao Exército para reprimir protestos, também incluem uma comissão para investigar os confrontos nas ruas entre manifestantes do governo e da oposição. Suleiman disse que o presidente estava satisfeito com o que definiu como um processo de reconciliação nacional.

- O presidente também ressaltou a importância de criarmos um plano e um cronograma para uma transição pacífica e organizada - afirmou Suleiman, acrescentando que Mubarak deu ordens para acabar com a repressão.

Enquanto o público respondeu voltando às ruas, depois de dois dias relativamente mornos, analistas também vieram a público denunciar o governo por uma tentativa de ganhar tempo à espera de mais cansaço dos manifestantes e do crescimento da frustração de egípcios desejando uma volta à normalidade. Para Emad Gad, cientista político do Centro al-Ahram, o regime de Mubarak tenta explorar a falta de maior articulação da oposição para se manter no poder, mas a tática não estaria passando despercebida.

- Como vimos hoje (ontem), essa tentativa mal disfarçada de ganhar tempo só está contribuindo para aumentar a frustração dos manifestantes, e não foi surpresa ver mais gente nas ruas. O governo sequer fez pronunciamentos que poderiam ter acalmado um pouco os ânimos, como algum tipo de pedido desculpas pelos abusos cometidos - explica Gad.

Premier diz que não aceitará golpe

Para o analista, um dos grandes problemas é a desconfiança por parte dos representantes da oposição, que nos últimos dias tiveram reuniões com Suleiman e o premier Ahmed Shafiq:

- Na verdade, os dois lados têm confiança zero um no outro.

Algo que explicaria uma entrelinha no pronunciamento feito por Suleiman ontem. Ao defender a necessidade de diálogo, o vice-presidente disse que o governo não aceitará o que vê como um golpe - no caso, os pedidos para a saída imediata de Mubarak (o presidente já anunciou que deixará o cargo após as eleições de setembro).

- Precisamos colocar um fim nessa crise o mais rápido possível. A desobediência civil é uma grave ameaça à sociedade. Os pedidos para uma saída do presidente não são apenas um insulto a ele, mas ao povo egípcio de modo geral - argumentou Shafiq.