Título: Egito vive dia histórico para o mundo
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Fonte: O Globo, 12/02/2011, Opinião, p. 6

A queda do Muro de Berlim, em 1989, foi o símbolo da falência de um modelo de sociedade que se transformara em pura opressão. A queda de Hosni Mubarak ontem no Egito, após 18 dias de protestos populares e menos de um mês depois da fuga do ditador da Tunísia, pode significar o fim de um modelo falido no mundo árabe e, espera-se, da ideia de que o Ocidente necessita de ditadores árabes para segurar o radicalismo religioso islâmico e sua obsessão pela jihad terrorista. "O mundo testemunhou um momento histórico", resumiu o presidente dos EUA, Barack Obama.

O rastilho de pólvora libertária que percorre os países árabes parece tão fulminante quanto foi a queda dos regimes comunistas na Europa Oriental há 20 anos. O mundo, surpreso, ficou a reboque. É a Revolução 2.0, como a chamou Wael Gonin, executivo da Google, empresa que ajudou na organização cibernética dos protestos no Egito, e um de seus heróis, pois passou 12 dias algemado e vendado pelas forças de segurança do ditador. A revolução da Praça Tahrir significou a quebra de todos os paradigmas e a entrada em cena de uma nova geração. Dois terços da população egípcia têm menos de 30 anos e, portanto, nunca votaram para presidente. Mubarak chefiava por três décadas uma ditadura férrea, com imobilismo político e social, estagnação econômica, repressão permanente e corrupção galopante. Em outros tempos, era possível manter esse modelo isolado. A globalização, a internet e as mídias sociais acabaram com essa possibilidade. O povo egípcio saiu às ruas em busca de tudo a que tinha direito: democracia, liberdades, dignidade, empregos, oportunidades, justiça, fim da corrupção, melhoria das condições de vida. Mas também de transparência e modernidade que vislumbrava em países democráticos, abertos.

O povo egípcio venceu o Estado opressor numa revolução legítima, sem fanatismos, sem culto à personalidade, sem ideologias (a não ser a da derrubada da ditadura), sem queima de bandeiras de supostos inimigos externos, sem aiatolás. A revolução da Praça Tahrir é a vitória da juventude sobre a velha guarda autocrática e militarista, do smart power sobre o hard power. E é ruim para os falcões de todos os quadrantes, para os adeptos do fanatismo religioso tanto no mundo árabe quanto em Israel, para a al-Qaeda, para os adeptos do quanto pior melhor. Mostra à ditadura teocrática de Teerã que não se deve subestimar a força do povo iraniano, mesmo tendo as forças repressoras do presidente Ahmadinejad esmagado a Revolução Verde, em 2009.

Mubarak era o símbolo do ancien régime laico árabe, aferrado ao poder. Se ele pôde ser defenestrado, o mesmo pode acontecer com seus clones no mundo árabe. Impensável há até um mês atrás, um vento de mudança, vitalidade e modernidade sacode outros países da região. Argélia, Mauritânia, Iêmen, Jordânia, Síria, Arábia Saudita, todos já sentiram lufadas. Seus governantes devem se apressar para atender às demandas do povo, ou serem inapelavelmente atropelados por ele. E que não apelem para o medo do islamismo radical. Pede-se ao resto do mundo que abandone ideias preconcebidas e se atualize rapidamente para estar à altura dos acontecimentos na Tunísia e no Egito. Os Estados Unidos, aliados desde sempre de Mubarak, se reciclaram e pressionaram pela saída do ditador. É vital que joguem toda sua força num processo de transição ordeiro e pacífico, com eleições a que tenham acesso todas as forças representativas da sociedade egípcia. Washington dispõe de um instrumento poderoso para circunscrever os militares egípcios dentro de seus limites constitucionais: US$1,3 bilhão anuais em ajuda, usados primordialmente para manter as Forças Armadas.

Tudo está apenas começando. Ainda há muitas incertezas pela frente. Não está claro que papel terão os poderosos militares egípcios na transição. Que não se caia na tentação do golpismo ou naquela que levou o cientista político americano Francis Fukuyama, após a queda do Muro de Berlim, a escrever o livro "O fim da História e o último homem", em que proclamava a vitória definitiva do liberalismo político e econômico. Deu com os burros n"água.