Título: Carcereiro da Casa da Morte perde o capuz
Autor: Otavio, Chico; Herdy, Thiago
Fonte: O Globo, 13/02/2011, O País, p. 12

Descoberto, algoz de amigo de Dilma reluta em revelar segredos do pior centro de torturas montado pela ditadura

● RIO eBELO HORIZONTE. Em poucas frases, doutor Ubirajara destila o azedume. Para não revelar oque sabe, alega que está morrendo, vencido por uma moléstia grave. Reclama de um suposto dedo-duro, prometendo ¿rezar por ele, pela maldade que fez¿ ao delatar oseu paradeiro. Earremata a conversa com sarcasmo: ¿Se alguém atirar em mim, estará me fazendo um favor. Aos 74 anos, os cinco últimos dedicados a enfrentar um câncer de próstata, o ex-sargento do Exército eadvogado Ubirajara Ribeiro de Souza rechaça, agoniado, achance de revelar um segredo que carrega há quatro décadas: o destino de Carlos Alberto Soares de Freitas, oBeto, amigo eex-comandante de Dilma Rousseff nos tempos em que a presidente da República era militante da VAR-Palmares, organização da luta armada atuante no início dos anos 1970. Listas de entidades de direitos humanos apontam oexsargento como um dos torturadores do piorporão montado pelo regime militar: a ¿Casa da Morte¿, em Petrópolis. Por ter sido, como a vítima, jogador de basquete em Belo Horizonte, no início dos anos 1960, Ubirajara teria sido reconhecido por Beto na ¿Casa da Morte¿, aparelho supostamente montado pelo Centro de Informações do Exército (CIE), naquela época, para torturar e eliminar os principais líderes da guerrilha urbana, considerados irrecuperáveis. O comandante da VAR teria sido assassinado ali em 1971. O episódio da identificação do torturador ficou conhecido por causa do depoimento da única sobrevivente da casa, a também ex-militante da VARe mineira Inês Etienne Romeu. Em1980, ela contou à OAB que o sargento-jogador, reconhecido por Beto, usava no cárcere do CIE os codinomes ¿Zé Grande¿ ou ¿Zezão¿.

Ex-sargento advoga hoje para a família militar

Quarenta anos depois, o enigma sobre ¿Zé Grande¿ chega ao fim: ele é hoje doutor Ubirajara, advogado formado em 1974 (quando arepressão mais sangrenta perdia a força), que trabalha e vive no Rio. Sua clientela foi amealhada nomeio de onde saiu: militares da reserva e viúvas que se sentem credores de algum benefício das Forças Armadas. No momento em que o Ministério Público Federal retoma as investigações sobre a ¿Casa da Morte¿ eo paradeiro das vítimas em cemitérios da Região Serrana, alocalização do ex-sargento é um alento para os que nunca perderam aesperança. Se o Brasil amarga até hoje uma lista de 146 desaparecidos, é plausível dizer que o destino final de parte do grupo (não existe um número exato) te-nha sido Petrópolis. Beto está na lista. Há um ano, quando o PT formalizou o nome escolhido para disputar a sucessão de Lula, Dilma fez um discurso emocionado, no qual homenageou os companheiros que haviam perdido a vida na luta contra o regime militar. Citou três nomes. Um deles, de seu ex-companheiro na VAR: ¿Beto, você ia adorar estar aqui conosco.¿ Carlos Alberto desapareceu no dia 15 de fevereiro de 1971, depois de descer de um ônibus na esquina das avenidas

Nossa Senhora de Copacabana e Princesa Isabel. Provavelmente capturado pela repressão no mesmo dia, teria seguido para a ¿Casa da Morte¿ por ser considerado um ¿subversi- vo irrecuperável¿. Inês Etienne, ao descrever os 15 carcereiros responsáveis pelos suplícios que sofreu em Petrópolis, de maio a agosto de 1971, impressiona pelo rigor dos detalhes, dos nomes, das características físicas. De sua memória, o sargento Ubirajara é revelado para a História: ¿Alto, mais de 1,90 metro, mineiro, preto, ex-jogador da seleção mineira de basquete, ocasião em que era sargento do Exército.¿ A descrição éprecisa. Anos antes da barbárie, os ombros largos, braços fortes e quase dois metros de altura davam a Ubirajara, o Bira das quadras, oinevitável apelido de ¿guarda-costas¿ dos colegas do Ginástico Esporte Clube e da seleção mineira dos anos 60. Nos jogos regionais de Uberlândia, no Triângulo Mineiro, um desentendimento entre jogadores do Ginástico e do time adversário transformou-se em briga generalizada. O principal protagonista da ocasião, ninguém esquece: ¿ Pô, vai querer mesmo en- carar o Birinha?¿dizia Ubirajara aos adversários, arreganhando os dentes edissipan- do qualquer indisposição entre os atletas. Quem conta o caso é otécnico do time, Humberto Ladeira, responsável por apresentar o esporte ao jogador quando Bira ainda morava no Mato da Lenha, favela da região Oeste de Belo Horizonte.

Bira tinha pouco mais de 20 anos e era levado de carro para casa todos os dias pelo técnico, depois do treino. A dedicação à equipe de basquete durou pouco tempo, porque não foi mais possível conciliála com acarreira que ele iniciava no Exército. ¿ Ele foi meu pupilo, jogou uns cinco anos, mas depois foi servir em Juiz de Fora. Logo entrou para a Polícia do Exército (PE) ¿ conta Ladeira, que, mesmo distante, nunca perdeu o contato com o ex-jo- gador,que até hoje o chama de ¿pai branco¿.

Bira contou ao técnico que atuou na ¿Casa da Morte¿ Ladeira nunca deixou de receber cartas de Ubirajara, onde ele lhe contava as novidades. Da ascensão de cabo a sargento, passando pela entra da no Serviço Nacional de Informação (SNI), o trabalho como guarda-costas de autoridades e aconvocação para trabalhar na ¿Casa da Morte¿. Mesmo servindo no aparelho que ficou conhecido como aquele de onde nenhum militante da luta armada saía vivo ao treinador ele não deixava transparecer aviolência do seu trabalho, pelo contrário. ¿ O Bira foi da repressão mas salvou muita gente. Teve uma moça lá em Petrópolis mesmo que ele salvou. Ele me escreveu uma vez efalou comigo disso ¿ conta Ladeira que diz não ter guardado as cartas do ¿filho preto¿. Embora confidenciasse a Ladeira suas ações, Bira pedia ao ex-técnico que não contas se detalhes aos colegas. ■