Título: No bolso do tráfico
Autor: Werneck, Antônio
Fonte: O Globo, 20/02/2011, Rio, p. 17

No último dia 6, um domingo de muito sol e praia no Rio, forças de segurança estaduais e federais levaram menos de duas horas para ocupar, sem tiros, nove favelas do Complexo do São Carlos, no Estácio, e de Santa Teresa, com o objetivo de implantar três Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). Mas foi uma movimentação inesperada, na madrugada do dia 2, que agitou os corredores da Polícia Federal do Rio, na Praça Mauá: um policial civil, que consta da folha de pagamento da quadrilha do traficante Antônio Bonfim Lopes, o Nem, chefão da venda de drogas na Rocinha, foi acordado em casa por um telefonema e recebeu uma ordem. Ele precisava transportar armas escondidas no São Carlos para a Rocinha.

O telefonema foi interceptado por agentes federais que trabalhavam na Operação Guilhotina e também por policiais da Delegacia de Repressão a Entorpecentes (DRE), da PF. Numa ponta da linha estava o traficante Anderson Rosa Mendonça, o Coelho, chefe do tráfico no São Carlos e sócio de Nem. Com o anúncio do governo estadual de que o complexo no Estácio seria ocupado, Coelho fugiu para a Rocinha, supostamente sob escolta de policiais da banda podre. Mas chegou à favela de São Conrado sem suas armas, escondidas num paiol: 15 fuzis, uma quantidade não descoberta de pistolas e munição.

Segundo os agentes, o policial civil ¿ que já estaria identificado ¿ usou um carro da polícia descaracterizado para o transporte e, apesar do cerco da PF feito às pressas naquela madrugada, conseguiu seu objetivo: entregou as armas na Rocinha.

¿ Já cheguei ¿ disse o policial ao traficante Coelho.

A Operação Guilhotina, desencadeada no dia 11 pela PF para o cumprimento de 45 mandados de prisão contra policiais civis e militares, começou em 2009, com o nome de Operação Paralelo 22, comandada pelos policiais federais de Macaé. Eles investigavam as ramificações da quadrilha do traficante Rogério Rios Mosqueira, o Roupinol, originário daquela cidade, e seu sócio Coelho, quando descobriram que os bandidos contavam com uma rede de colaboradores em delegacias e batalhões. Em troca de gordas propinas mensais, os policiais avisavam aos traficantes quando haveria operações. Através de informações obtidas com os grampos feitos pela PF, há suspeita de que os traficantes mantinham informantes no Batalhão de Operações Especiais (Bope), em batalhões convencionais da PM e em delegacias especializadas da Polícia Civil.

Um dos mais graves vazamentos de informação sobre ações policiais ocorreu em setembro de 2009. Depois de localizar Roupinol na Favela da Rocinha, onde o criminoso vivia sob a proteção de Nem, um dos bandidos mais procurados pela polícia do Rio, os federais pediram a colaboração da Secretaria de Segurança e montaram uma incursão. Para traçar uma estratégia, uma equipe da cúpula da polícia do Rio se uniu aos agentes federais na secretaria.

A operação foi marcada, então, para a madrugada do dia 3 de setembro de 2009 ¿ um dia antes, policiais do Bope conseguiram se infiltrar no morro e permanecer escondidos. Mas todo o sigilo não foi suficiente. Durante a noite, os traficantes receberam uma mensagem de texto por celular, avisando sobre a operação. Policiais federais que monitoravam os bandidos interceptaram o torpedo: ¿Amanhã tem opera aki do bope, q ta no mato. cecopol q pediu pra fazer opera; vai ser cedo¿. Temendo pela segurança dos policiais do Bope, o secretário de Segurança, José Mariano Beltrame, abortou o plano e retirou os PMs da Rocinha. Roupinol acabou sendo executado ano passado, numa operação da Polícia Civil, agora posta sob suspeita de queima de arquivo.

O nome de Coelho já havia aparecido muito antes nas investigações da Polícia Federal: em 2005, quando ele resolveu dar abrigo no Rio a Roupinol ¿ pouco conhecido na época, o bandido cresceu rapidamente no mundo do crime, comprando pasta-base de cocaína barata na Bolívia e beneficiando a droga em favelas da Região dos Lagos. Com dinheiro e poder, Roupinol passou a investir pesado na compra de armas de guerra e subiu no conceito dos criminosos do Rio. Abrigado inicialmente nas favelas do Complexo do São Carlos, acabou virando ¿dono¿ dos morros da região. E comprou a proteção de policiais de várias unidades.

Mas Roupinol só se mudou definitivamente para o Rio quando a PF deflagrou em Macaé a Operação Morpheu, em março de 2007, com a participação de 250 policiais. O resultado foi a prisão de 15 pessoas diretamente ligadas ao traficante e a apreensão de 80 quilos de pasta-base, além de muita munição e diversas armas. Com a morte de Roupinol, Coelho assumiu o controle das favelas de São Carlos, em sociedade com Nem.

¿ Ele virou uma espécie de Fernandinho Beira-Mar (Luiz Fernando da Costa) do tráfico no Rio: vende drogas, tem muitas armas e paga propina para receber proteção de policiais ¿ disse um delegado federal do Rio.

Foi seguindo o fio da meada iniciado em Macaé que os policiais federais descobriram que o problema era muito maior. Os mesmos policiais que achacavam o tráfico mantinham uma ¿caixinha¿ da contravenção, recebiam dinheiro do comércio de produtos piratas e ainda ganhavam atuando como milicianos. Segundo a Polícia Federal, durante a Operação Guilhotina, ficou provado que os informantes mantidos na Polícia Civil costumavam comandar operações. Eles escolhiam os policiais civis que iam acompanhá-los, inclusive o delegado.

¿ Não era o contrário. Os informantes mandavam em várias operações e tinham um poder muito grande em delegacias especializadas ¿ afirmou um delegado.

Delegados pediam favores a inspetor

Ainda segundo as investigações que culminaram na Operação Guilhotina, o inspetor Christiano Gaspar Fernandes, supostamente alertado sobre a ação da PF pelo delegado Allan Turnowski, ex-chefe de Polícia Civil, tinha muito poder na polícia fluminense.

¿ Vários policiais e até delegados ligavam para ele pedindo sua intervenção. Queriam que ele conseguisse uma transferência ou resolvesse uma pendência no comando da Polícia Civil. Isso o torna uma peça fundamental no esquema criminoso que descobrimos ¿ afirmou um delegado.

Foi por supostamente vazar a operação para o inspetor Christiano que Turnowski foi indiciado e afastado do comando da polícia. A conversa, interceptada por policiais federais, teria acontecido no ano passado, depois de a PF chegar a um informante que trabalhava na Delegacia de Combate às Drogas (Dcod). Allan teria dito a seu subordinado para ficar atento, porque a PF preparava uma operação. Um dos alvos do inquérito, Christiano foi preso. Com passagem pela Delegacia de Repressão a Armas e Explosivos (Drae), o inspetor estava lotado na 22ª DP (Penha). Durante a Operação Guilhotina, a delegacia foi fechada durante duas horas para o cumprimento de mandados de busca e apreensão.

A Operação Guilhotina foi deflagrada pela PF, com apoio da Secretaria de Segurança e do Ministério Público estadual, no dia 11 deste mês, com o objetivo de prender policiais civis e militares acusados de ligações com o crime organizado. Das 45 pessoas indiciadas, 38 já foram presas, sendo 20 policiais militares e dez civis. Entre eles, está o ex-subchefe de Polícia Civil Carlos Antônio Luiz de Oliveira, acusado de comandar a venda de armas e de informações a traficantes, além de explorar uma milícia na Favela Roquete Pinto, em Ramos. Na noite de sexta-feira, a Justiça aceitou a denúncia do MP contra 44 investigados. A PF instaurou ainda outro inquérito, em que Turnowski foi indiciado por vazamento de informação.