Título: Recorrer, recorrer para não pagar
Autor: Rosa, Bruno ; Ordoñez, Ramona
Fonte: O Globo, 20/02/2011, Economia, p. 29

Milhares de brasileiros sofreram com o apagão aéreo entre 2006 e 2007, mas até hoje ainda falta analisar infrações cometidas na época pelas empresas do setor. Em novembro de 2009, milhões de lares ficaram sem luz, acarretando inúmeros prejuízos aos consumidores. No entanto, a companhia responsável pela geração de energia elétrica, a estatal Furnas, ainda não pagou a multa que recebeu. Em um verdadeiro ambiente de impunidade, levantamento feito pelo GLOBO revela que, entre 2005 e 2010, as seis principais agências reguladoras de setores essenciais como saúde, petróleo, energia, aviação, telecomunicações e transportes deixaram de arrecadar pelo menos R$2,2 bilhões em multas aplicadas às empresas. Ou seja, 70% do total. Cobraram R$3,1 bilhões, mas receberam apenas R$969 milhões.

Segundo as próprias agências e advogados especialistas no setor, a demora entre aplicar uma multa e receber o dinheiro é explicada pelo tempo em que os casos levam para serem julgados. Nos órgãos fiscalizadores, um parecer final consome de dois a cinco anos, dependendo da gravidade da infração cometida pela empresa. O tempo, porém, pode ser ainda maior, chegando a dez anos, se as companhias forem à Justiça comum.

Assim, como as infrações prescrevem em cinco anos, as empresas usam todas as possibilidades de recursos disponíveis para não pagar as multas. Em alguns casos, só depositam o valor da sanção quando seu nome está prestes a entrar na dívida ativa da União, informam a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) e a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).

Além da demora, o cenário fica ainda pior com a falta de investimento por parte das agências na qualificação dos técnicos responsáveis em lavrar os autos de infração. Advogados ligados às empresas dão alguns exemplos: faltam documentos e sobram decisões tidas como sem fundamentos jurídicos. Os órgãos, como a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), reconhecem que é preciso avançar:

- Hoje, não temos um manual para fiscalização (são 626 fiscais). A ideia é ter uma homogeneização e criar um padrão. Além disso, nem sempre os contratos com as empresas são claros em termos de obrigações, algo que irá mudar com as novas licitações que serão feitas no segundo semestre. Estamos ainda preparando a revisão do marco regulatório, com a contratação de um trabalho, que terá apoio do Banco Mundial, para propor um projeto de lei. Às vezes, a regulamentação é conflitante com a de outros órgãos. Por isso, as empresas entram na Justiça e, na maioria das vezes, acabam ganhando - diz Bernardo Figueiredo, diretor-geral da ANTT.

ANS recebe só 2,3%. Furnas vai à Justiça

O caso que envolve ainda Furnas e a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) é emblemático. A multa, de R$53 milhões devido ao apagão de 2009, será questionada na Justiça, já que a geradora se considera inocente, segundo informou ao GLOBO. O caso foi julgado no último dia 8 pela diretoria da Aneel, que já havia reduzido o valor da infração para R$43 milhões. Esse caso não é exceção. De 2005 a 2010, a Aneel aplicou R$648,8 milhões em sanções e recebeu a metade: R$331,7 milhões.

Mas são as operadoras que comercializam planos de saúde as que mais recebem penalidades e não pagam, segundo o levantamento do GLOBO. A ANS, que fiscaliza o setor, aplicou R$1,051 bilhão em multas entre 2005 e 2010, mas recebeu apenas 2,3% - ou R$24,148 milhões. Eduardo Sales, diretor de Fiscalização da ANS, explica que, às vezes, o problema que envolve um cliente pode afetar milhares de usuários, elevando o valor da sanção à empresa. Ele lembra que os processos levam em média três anos para serem concluídos. Sales ressalta que o desafio hoje é reduzir o número de recursos disponíveis às companhias:

- Temos ações de fiscalização reativa, fruto de denúncias, e ativa, com equipes treinadas em 12 núcleos regionais. Estamos fazendo trabalhos para reduzir o volume de processos. São quase 20 mil demandas por ano. Um exemplo é a criação de uma direção técnica, com funcionários da agência, que vai ficar dentro da operadora, sempre quando uma anomalia for detectada. Dependo dos resultados dessa equipe, pode-se até liquidar a empresa. O projeto vai para consulta pública. Tantos recursos por parte das empresas escravizam. E todo esse nosso trabalho acaba sendo declarado nulo.

A mesma avaliação tem a Anac, que começou a funcionar em março de 2006, quando herdou 20 mil processos do extinto Departamento de Aviação Civil (DAC). Em 2008, sete mil multas prescreveram. Ainda sim, a agência julga casos de 2006 envolvendo Varig, TAM, Air Canada e Air France. Ângela Rizzi, presidente da Junta Recursal da Anac, espécie de segunda instância do órgão, lembra que há um esforço para se resolver os casos antigos:

- Estamos implantando sistema para contabilizar as infrações lavradas pelos 1.100 inspetores que são julgadas nas superintendências (primeira instância). Em relação ao caos aéreo no fim de 2006, cerca de 5% dos processos ainda não foram julgados. O problema é que muitas empresas esperam a multa ir para a dívida ativa da União para pagá-la. Como antes não se processavam as multas, elas ainda procuram maneiras de se eximir. A multa tem de ter um caráter pedagógico. São muitos recursos.

Na Agência Nacional do Petróleo (ANP), situação é a mesma, com R$638,295 milhões em multas aplicadas, principalmente, aos postos de gasolina por venderem produtos adulterados entre 2006 e 2010. No período, arrecadou só 19,5% (R$124,84 milhões).

E é essa visão que grande parte das companhias ainda têm das agências. Segundo o executivo de uma empresa de infraestrutura, a principal perda, ao receber uma multa, é na imagem:

- Não há perda para os cofres da companhia, pois ou a multa não é paga ou se consegue uma redução do valor. As multas muito altas são facilmente contestadas e motivo de piada.

Enquanto algumas agências ampliam seus quadros de fiscalização, a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), que não quis falar sobre o assunto, registrou queda de 16,19% no número das ações de fiscalizações: caiu de 179.588, em 2001, para 150.515, em 2009, último dado disponível.