Título: A nova Líbia em poder dos rebeldes
Autor: Berlinck, Deborah
Fonte: O Globo, 25/02/2011, O Mundo, p. 38

Jovens armados controlam a fronteira do país e comemoram a chegada de jornalistas

POLICIAL DESERTOR (embaixo) faz patrulha em posto de controle de Tobruk, enquanto um líbio (à direita) comemora, com uma bandeira, o domínio por parte de opositores da cidade. (Acima) imagem de Kadafi pregada em base militar abandonada, é vandalizada por rebeldes

HOMEM GRITA em frente a carros queimados nas proximidades de um prédio oficial em Tobruk: cidade tomada por rebeldes

Há dez dias, Sara e Youssef, dois jovens médicos líbios de 26 e 27 anos, celebravam o casamento em Benghazi ¿ segunda maior cidade da Líbia ¿ numa festa que reuniu 800 pessoas.

¿ Dançamos e cantamos a noite inteira. Um verdadeiro casamento líbio ¿ contou Sara.

Como muitos líbios, o casal não imaginou que a onda revolucionária que se alastrou pelo mundo árabe atingisse o país tão rápido. Justo na terra de Muamar Kadafi, o ditador mais resistente da África muçulmana e que está no poder há 42 anos. O casal partiu em lua de mel para a Turquia, mas voltou, ontem, às pressas.

¿ Estávamos passeando em Istambul e vimos imagens horríveis da minha cidade. Não consigo falar com a minha família. Odeio o Kadafi ¿ revoltou-se Sara.

Ontem, o casal atravessou às pressas a fronteira do Egito, arrastando as malas a pé. Viajaram mais de dez horas de carro do Cairo. Na mesma travessia, um grupo enorme de imigrantes do Nepal acampava pelo chão com suas malas empilhadas, enquanto uma leva de refugiados egípcios voltava para o país fugindo do caos da Líbia. No topo de caminhonetes, eles carregavam o que podiam tirar de suas casas, como colchões, cobertores, roupas e até alguns móveis.

A fronteira do Egito com a Líbia está nas mãos dos revolucionários. O país, neste trecho, virou terra de ninguém. Ali, Kadafi é proclamado um homem morto. E é uma recém autointitulada milícia que verifica passaportes e recebe visitantes ¿ na sua maioria jornalistas estrangeiros à espera da queda de mais um ditador.

¿ Ninguém aqui tem passaporte de Israel? Israelenses aqui não entram ¿ anunciou Aladdin Mustafa.

Há quatro anos morando em Dubai, nos Emirados Árabes, onde trabalha como gerente de vendas, Mustafa, de 38 anos, é militante do grupo opositor Frente Nacional de Salvação da Líbia. Sua família foi perseguida pelo regime: o pai passou 7 anos na cadeia e o tio, Mohamed al-Magaryaf, segundo ele, é considerado o inimigo número 1 do regime de Kadafi.

¿ Líbios no mundo inteiro estão enviando dinheiro para ajudar. Em um dia recebemos US$500 mil ¿ disse.

A chegada na Líbia é um prenúncio da confusão no país: uma tempestade de areia em meio ao belíssimo deserto e as construções vazias lembram uma cena de faroeste de Hollywood. Numa caminhonete lotada de jornalistas, o motorista pregou no vidro a bandeira da Líbia e uma foto de três mártires ¿ um sinal para as milícias de que naquele carro não havia ninguém do campo inimigo. Na primeira parada de controle, o motorista anunciou:

¿ São jornalistas, são jornalistas!

Um menino, com uma arma na mão, sorriu. Outro, com um facão na cintura, fazia coro com os amigos.

¿ Morte a Kadafi, morte a Kadafi!

Em hotel, repórteres e desertores

Foi apenas uma das várias milícias que o GLOBO encontrou pela frente. Um integrante de um dos grupos, que se despediu citando os nomes dos jogadores brasileiros Pato e Ronaldinho Gaúcho, pediu expressamente:

¿ Só escrevam o que veem. Não digam que a Líbia está um caos. Não queremos intervenção dos estrangeiros aqui.

Depois de duas horas de estrada no deserto, chega-se a Tobruk, uma das primeiras cidades que foram tomadas pelos rebeldes. Seu centro é hoje uma espécie de mini Praça Tahrir, local onde egípcios provocaram a queda da ditadura de Hosni Mubarak.

Omar Nuri, um homem de 45 anos, abaixou a calça no meio da multidão para mostrar a ferida de uma bala que atravessou a sua perna. Era um tiro, segundo ele, disparado do topo de um prédio por um dos policiais de Kadafi, nos primeiros dias das manifestações.

Os jovens líbios, hoje no comando da cidade, estão de prontidão na praça com bandeiras e cartazes, esperando a revolução chegar a Trípoli, capital da Líbia. Três rapazes de Tobruk morreram em combate com as forças líbias. Hoje, tudo que se refere ao regime líbio na cidade ¿ o posto de polícia, as fotos do ditador e o famoso Livro Verde de Kadafi ¿ foi destruído.

O hotel al-Masera, um estabelecimento cinco estrelas desconectado do mundo ¿ nada mais funciona além dos telefones da recepção ¿ virou o quartel-general da imprensa estrangeira. É nesse hotel que circula também um grupo de oficiais do Exército líbio que desertou. Um deles, o general Rashid al-Seini, contou que recebeu claras ordens do pessoal de Kadafi para matar.

¿ A ordem era: qualquer manifestante que apareça, atire. Eu me recusei, e meus 300 soldados resolveram me seguir ¿ revelou, explicando, ainda, que foi fiel ao ditador durante anos porque não teve escolha. ¿ Na Líbia, quem se opõe a Kadafi não apenas decreta a sua própria morte como a de sua família.

Perguntado se hoje mataria Kadafi, o general afirmou que quer ver o ditador apodrecendo numa prisão.

¿ Eu o conheço. Ele é um covarde e vai fugir.

Enquanto o ditador não cai, os moradores de Tobruk seguem vigilantes e se organizam, conscientes de que mercenários estrangeiros estão circulando pelo país para fazer o trabalho sujo que o Exército se recusa a fazer. Mohamed Edris, de 19 anos, por exemplo, é parte de um grupo de jovens que ronda a cidade à noite ¿ uma espécie de polícia improvisada. Ele faz a ronda com outros cinco amigos.

¿ Eu faço isso pela minha cidade. Amo o meu país. Aqui Kadafi não entra. Mas estamos fazendo isso, também, para impedir ações de criminosos ¿ explicou.

O pai de Mohamed, Kamiss Edris, um meteorologista de 55 anos, carrega no carro um pedaço do Livro Verde de Kadafi, que fora construído em forma de monumento ao ditador, no centro de Tobruk. A obra foi destruída pelos jovens. Mostrando um dos destroços, ele anunciou:

¿ Isso aqui é um pedaço do nosso Muro de Berlim. O Muro de Berlim da Líbia.