Título: Horrores do patio de Kadafi
Autor: Berlinck, Deborah
Fonte: O Globo, 28/02/2011, O Mundo, p. 25

No quartel do Exército em Benghazi, pessoas vivas eram enterradas entre mortos

SOLDADO MARRETA parede em um bunker subterrâneo do quartel-general do Exército em Benghazi: local virou ponto de peregrinação e símbolo dos horrores da ditadura

ESTACAS DE madeira sustentavam valas: andava-se sobre os condenados sem saber

CORPOS CARBONIZADOS foram encontrados, mutilados ou com mãos atadas

Osoldado Akram Ali, 25 anos, e o professor de escola Issam El Bassiuni, 43, não se conheciam. Ontem, no escuro, com a ajuda de duas marretas, lanternas e a luz de telefones celulares, os dois homens escavavam alucinadamente uma parede numa espécie de bunker subterrâneo semidestruído no quartel-general do Exército de Benghazi ¿ segunda maior cidade da Líbia, hoje sob o comando dos rebeldes. Interromperam a escavação de noite, prometendo voltar hoje com uma britadeira.

¿ Estou 100% certo de que tem corpos escondidos aqui. Eu conheço este presidente (o ditador Muamar Kadafi) ¿ dizia Issam, com o rosto preto de poeira, os pés encharcados numa poça d¿água, quase espumando de raiva.

Uma semana depois da tomada da cidade pelos rebeldes, os líbios de Benghazi estão descobrindo o terror do regime de Kadafi: os buracos da morte, onde, segundo testemunhos, pessoas eram jogadas ainda vivas ou depois de executadas. Akram, um soldado desertor que pertencia a um outro regimento, conta que ajudou a tirar 20 pessoas vivas de dentro de um destes buracos, logo depois da conquista do quartel-general. Haviam escutado gemidos através de um tubo de ventilação.

¿ Foram torturados e colocados no buraco, coberto de areia. Passaram dez dias sem água ou luz. Estavam colados uns nos outros, praticamente de pé, no meio de mortos ¿ contou, dizendo que não conhecia nenhuma das pessoas.

Soldados enterrados por desobediência

A reportagem do GLOBO entrou em dois destes buracos com a ajuda de líbios que, chocados, hoje fazem uma peregrinação ao local, pedindo morte a Kadafi.

¿ Olhe o que ele fez! ¿ gritou Yunis Worfali, um líbio que trabalha para uma companhia petrolífera inglesa.

Ele levou a família para ver o local, chamado Campo de al-Fadeel Bo Amro, mas também conhecido como ¿o pátio de Kadafi¿.

Sustentados por estacas de madeira, com paredes cimentadas com tijolos, vários destes buracos foram descobertos nos últimos dias, todos no pátio do enorme quartel-general do Exército ¿ principal local da batalha de Benghazi, que teria feito cerca de mil mortos.

¿ Também descobrimos nos buracos corpos de 105 soldados executados ¿ revelou o soldado Akram.

Segundo os relatos, as pessoas eram jogadas ali e, depois, os buracos eram camuflados com areia, de forma que quem andasse no pátio não tivesse ideia de que passava exatamente sobre os condenados à morte. Num dos buracos havia um pequeno tubo para respirar, o que sugere que a pena era a morte lenta. A estrutura, com cimento e estacas, também indica a existência de um método de terror premeditado.

Há quatro dias, nove cadáveres carbonizados, alguns sem braços e outros com as mãos atadas, foram encontrados num dos buracos, dentro de plásticos verdes. A existência destes mortos foi confirmada ao GLOBO pelo neurocirurgião Imed Sharif e pelo estudante de Medicina Abdulaziz Lagha, 24, que viu e fotografou os corpos quando chegaram ao Hospital al-Jala para exame de DNA. Suspeita-se que sejam de militares que se recusaram a resistir à invasão.

¿ Como estudante de Medicina, já havia visto cadáveres, mas, como estes, foi a primeira vez. Fiquei chocado. Kadafi é pior do que Saddam Hussein ¿ desabafou, referindo-se ao ex-ditador do Iraque.

Anas Moktar, 31, programador de computadores, ajudou a escavar um dos buracos e diz que tirou quatro dos nove corpos carbonizados.

¿ É um grande choque para todos nós. Escutávamos histórias, mas não sabíamos nada sobre este lugar (o quartel-general do Exército) ¿ lamentou. ¿ Kadafi não é uma pessoa normal.

O neurocirurgião Sharif, aos 32 anos, virou peça de ouro: é um dos únicos dez neurocirurgiões de todo o leste da Líbia, território que hoje está sob o controle dos rebeldes:

¿ Todos os dias chega aqui alguém morrendo de outras cidades.

Passaram tantos mortos por ali que agora o Hospital al-Jala mudou de nome: é, agora, o Hospital dos Mártires. Dormindo, em média, apenas três horas por noite desde o início da revolução, o neurocirurgião admitiu que nunca havia visto tantos corpos baleados ou mutilados em sua vida. Ele está documentando todo o material que passa em suas mãos, tirando raios-X de crânios e corpos dos mortos, provando como foram vítimas de violência.

¿ Na quarta-feira em que começaram os protestos (16 de fevereiro), morreram dez pessoas neste hospital. Na quinta, foram 35. No dia seguinte, 75. No outro, 100. No futuro, sei que vou continuar vendo corpos assim se Kadafi continuar por aqui ¿ assegurou.

Túnel levava a palácio do ditador

O quartel-general do Exército em Benghazi virou ponto de peregrinação da população local. Famílias inteiras, carregando crianças e até bebês, percorrem esta verdadeira fortaleza, espalhada num enorme terreno de tantos muros quanto mistérios. É, também, uma amostra do poder de Kadafi. Um dos túneis subterrâneos, percorridos pela reportagem do GLOBO, desemboca num palácio, com jardim interno. Trata-se da casa do ditador na cidade ¿ agora saqueada e praticamente destruída pela fúria dos rebeldes.