Título: O discurso da presidente
Autor: Goldfajn, Ilan
Fonte: O Globo, 01/03/2011, Opinião, p. 7

"Odiscurso do rei" ganhou quatro estatuetas do Oscar, merecidas. O Rei George VI precisava discursar para preparar o Reino Unido para a Segunda Guerra Mundial. Mas era gago, o que dificultava a tarefa. O filme soube transmitir magistralmente o drama do rei que não conseguia se comunicar. Em tempos difíceis é preciso comunicar, não há escolha. Que o diga o governo brasileiro, que enfrenta um legado difícil - inflação crescente, vastas contas a pagar - e precisa desacelerar a economia para evitar o pior. O governo vai conseguir? Quanto esforço o governo está fazendo de fato? Após dois anos de excessos, os analistas têm dúvidas. Cachorro mordido por cobra tem medo de linguiça.

A inflação alcançou quase 6% no ano passado e caminha para ultrapassar o teto da meta de 6,5% em algum momento deste ano. A subida vertiginosa dos preços de commodities no mundo atingiu a inflação no Brasil, que já vinha pressionada por um descompasso entre oferta e demanda mantido desnecessariamente por um período prolongado. O resultado é uma inflação que já está corroendo a renda dos trabalhadores. Como sabe bem o brasileiro, a inflação é um imposto regressivo, atinge de forma desproporcional os mais pobres.

Em economia não há almoço grátis. A bonança dos últimos dois anos será paga em pelo menos dois anos de esforço desinflacionário. Há a inércia da inflação do ano passado, que se transmite via reajustes indexados, formal ou informalmente, ao passado. No ritmo atual, sem choques adicionais, a inflação volta para em torno de 6% só no fim deste ano e fica um pouco acima da meta, entre 4,5% e 5% em 2012.

Quanto maior o esforço inicial de combate à inflação, menos prolongado será o período de ajuste. Há um trade-off entre ajuste mais forte e mais prolongado. A dúvida é se haverá suporte prolongado para medidas impopulares (corte de gastos, salário mínimo, juros mais altos, menos crédito etc.). A sociedade está preparada para o gosto amargo do período de ajuste (desemprego subindo, por um tempo)?

Apesar das dúvidas dos analistas, o governo tem tomado diversas medidas que visam a reequilibrar o crescimento entre oferta e demanda e a combater a inflação. Em primeiro lugar, a aprovação de um reajuste do salário mínimo para R$545, mantendo a regra previamente acordada para o salário mínimo. Em segundo lugar, o anúncio do pacote de congelamento de R$50 bilhões do orçamento mostrou determinação. Não será o suficiente para atingir a meta de superávit fiscal este ano (estimamos 2,5% do PIB, abaixo da meta de 2,9%). Nem será suficiente para evitar que parte dos investimentos seja postergada. Contudo, tem o potencial de reduzir o crescimento dos gastos para menos de 3% em termos reais, comparado com uma expansão média anual em torno de 9% nos últimos anos. É uma desaceleração considerável. Em terceiro lugar, há esforços no âmbito monetário. O Banco Central do Brasil já subiu a taxa de juros Selic, na primeira reunião do Copom, e sinaliza que deve continuar nesse processo, inclusive nesta semana. A esse monetário esforço têm se adicionado medidas macroprudenciais que retiram recursos do sistema e encarecem o crédito.

Apesar das medidas acima, permanecem dúvidas e sinais ambíguos. Há a desconfiança herdada do passado recente de descumprimentos fiscais e manobras contábeis, reforçada pelo crescimento considerável dos gastos no mês de janeiro deste ano. Além disso, o anúncio de capitalizações recentes de bancos oficiais chama à memória o expansionismo recente e pode colocar em xeque todo o esforço de contenção.

O governo precisa uniformizar sua atuação e seu discurso. Não há espaço para medidas expansionistas compensando medidas restritivas. É necessário que todas as medidas apontem para a mesma direção, a fim de conseguir debelar o sério problema inflacionário e permitir a volta de um crescimento sustentado. O governo tem que estar alinhado para comunicar claramente a direção. Não há espaço para cacofonia, nem discursos conciliatórios com o expansionismo próprio de outrora. Tem que ser único o discurso da presidente.