Título: Kadafi: Meu povo morreria para me proteger
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Fonte: O Globo, 01/03/2011, O Mundo, p. 35
Em entrevista, ditador líbio nega protestos em Trípoli. Governo nomeia representante para negociar com rebeldes
TRÍPOLI. O ditador Muamar Kadafi acusou os países ocidentais de abandoná-lo na luta contra o terrorismo e de desejarem colonizar a Líbia. Numa de suas escassas entrevistas à mídia estrangeira desde o início do levante contra seu governo, Kadafi negou que os protestos tenham chegado a Trípoli e afirmou que os líbios estão dispostos a morrer por ele. A entrevista ocorreu no mesmo dia em que o ditador designou seu chefe de Inteligência Estrangeira para negociar com líderes rebeldes. A medida, no entanto, pode ter chegado tarde. A oposição diz não haver mais espaço para o diálogo, a União Europeia afirmou que Kadafi já perdeu o controle sobre a maior parte dos campos de petróleo e gás do país e as forças do ditador foram rechaçadas em pelo menos duas tentativas de recuperar cidades próximas à capital.
Num restaurante na costa de Trípoli, Kadafi riu quando foi perguntado se renunciaria. Ele disse a jornalistas da americana ABC News e dos britânicos ¿Sunday Times¿ e BBC que não renunciaria porque não ocupa um cargo no governo. Kadafi questionou a imposição de sanções baseadas em relatos da mídia e convidou a ONU a visitar a Líbia. Mais uma vez, disse que os manifestantes agem por influência de drogas e da rede terrorista al-Qaeda. Para ele, o presidente Barack Obama é um bom homem, mas ¿os Estados Unidos não são a polícia do mundo¿.
¿Estou surpreso que tenhamos uma aliança com o Ocidente para combater a al-Qaeda, e agora que estamos combatendo terroristas nos abandonem. Talvez queiram ocupar a Líbia¿, disse, segundo relatos de Christiane Amanpour, no site da ABC. ¿Todo o meu povo me ama. Eles morreriam para me proteger.¿
Opositores em Misurata derrubam avião militar
Horas antes, a TV al-Jazeera havia anunciado que o governo líbio indicara Bouzaid Dordah para negociar com os rebeldes antes de usar a força militar. Segundo fontes, um enviado do governo partiria ainda ontem para Benghazi, cidade tomada por rebeldes no leste, com alimentos e suprimentos médicos. Mas há poucas esperanças de diálogo. Os opositores formaram um Conselho Nacional, que abriga rebeldes de diferentes cidades, e deixaram claro no domingo que ¿não há mais espaço para negociar¿.
¿ Vamos esperar até que todas as tentativas se esgotem ¿ disse o vice-chanceler Khaled Kaim, perguntado se o governo usaria a força contra as cidades rebeldes. ¿ Se todas as tentativas e esforços para o diálogo se esgotarem, uma força bem dirigida será usada de acordo com as regras internacionais.
A advertência ocorre quando o governo lança novos contra-ataques. Ajdabiya e Rajma tiveram depósitos de munição bombardeados pela Força Aérea, segundo rebeldes. A TV estatal, no entanto, negou os bombardeios. Em Misurata, a terceira maior cidade do país, os revoltosos derrubaram um avião militar que tentava bombardear a rádio local, segundo testemunhas. Houve combates também numa base aérea que o governo tentava recuperar.
¿ Os manifestantes capturaram os tripulantes (do avião) ¿ contou um morador.
Sabratha virou um cabo de guerra entre os dois lados, com as forças pró-Kadafi ontem no comando. Assim como Misurata, Zawiya, uma área estratégica de refinação de petróleo a 50 quilômetros da capital, está cercada por 200 soldados com tanques, blindados e artilharia antiaérea, aparentemente da Brigada Khamis, de elite. Eles tentaram avançar à tarde, mas foram repelidos.
¿ Esperamos ataques a qualquer momento. Eles são muito numerosos ¿ contou um morador.
Em Trípoli, arroz a R$65 e racionamento
Embora Kadafi não admita que os protestos chegaram à capital, 400 pessoas foram dispersadas com tiros para o alto no bairro de Tajoura ao pedirem a queda do governo durante o funeral de uma das vítimas da repressão da semana passada.
¿ O sangue dos mártires não será em vão! ¿ gritavam os manifestantes.
Outras partes de Trípoli viviam uma calma aparente. Longas filas se formaram diante dos bancos, com os líbios em busca dos 500 dinares (R$680) prometidos pelo governo a todas as famílias na tentativa de conter a revolta. Muitas lojas reabriram, mas os moradores enfrentam o racionamento e a alta dos preços. Com um aumento de 500%, o saco do arroz de cinco quilos custa o equivalente a R$65. As padarias só podem vender até cinco pães por pessoa, e a maioria dos açougues está fechada. Além disso, moradores falam na chegada de famílias inteiras do deserto com seus camelos, para apresentar apoio ao ditador, e de milícias armadas nas ruas.
Ontem, o comissário de Energia da União Europeia, Guenther Oettinger, confirmou o que observadores já vinham indicando: a maior parte dos campos de gás e petróleo da Líbia está agora nas mãos de clãs ou líderes regionais. Os opositores controlam quase toda a parte leste do país, onde está boa parte dos campos, e algumas cidades do oeste. Mas têm poucas armas e munição. Kadafi controla Trípoli e cidades próximas e conta com as bem-equipadas Brigadas Khamis, comandadas por um dos filhos. Embora os opositores queiram marchar do leste até Trípoli, ataques da Força Aérea impedem que reforcem os protestos na capital.
Cerca de cem mil pessoas já deixaram o país, e pelo menos 20 mil aguardam para atravessar a fronteira com a Tunísia. A situação é muito tensa. Com os guardas tunisianos incapazes de conter o fluxo ¿ e muitas vezes reagindo com cassetetes para deter os refugiados ¿ muitos jovens estão trabalhando como agentes voluntários. Do outro lado da fronteira, pessoas desesperadas jogam as malas e depois tentam escalar o muro. Quem consegue passar é acomodado em escolas. Para o Crescente Vermelho ¿ organização semelhante à Cruz Vermelha ¿ já se trata de uma crise humanitária.
Africanos são confundidos com mercenários e caçados
A maior parte dos que tentam deixar a Líbia é composta por trabalhadores africanos. Grupos de direitos humanos temem que dezenas tenham sido mortos, ao serem confundidos com mercenários contratados pelo governo para reprimir os opositores. Centenas estão escondidos, segundo uma testemunha ouvida pela al-Jazeera, enquanto multidões de manifestantes ¿caçam mercenários negros africanos¿.
¿ Estamos sendo atacados por pessoas que nos acusam de sermos mercenários assassinos. Eles não querem ver negros ¿ contou o queniano Julius Kiluu, supervisor de uma construção. ¿ Nosso acampamento foi queimado. A embaixada e a empresa nos ajudaram a chegar ao aeroporto.