Título: Encontros com um líder delirante
Autor: Hisham Matar
Fonte: O Globo, 06/03/2011, O Mundo, p. 32

Sentada num pufe minúsculo em frente ao trono de segunda categoria, os sapatos do coronel Muamar Kadafi me chegavam quase à altura do nariz. Depois de ter passado várias semanas reclusa num hotel ¿ virtualmente sequestrada ¿ esperando para fazer a entrevista, estar nessa posição humilhante de submissão aumentava a minha irritação.

¿Então você é argentina e vem falar da heroica resistência de seu governo contra o imperialismo mundial¿, disse, em árabe, sem se dignar a olhar para mim, enquanto um membro de sua comitiva traduzia ao inglês.

¿Não, coronel. Venho entrevistá-lo sobre o avião cheio de armas que o senhor enviou a Galtieri durante a Guerra das Malvinas e os cavalos que recebeu dele em agradecimento¿, respondi.

Desta vez me olhou rapidamente e voltou a desviar os olhos. Como a maioria dos povos do deserto, Kadafi raramente olha direto para seu interlocutor. Com os olhos semifechados, prefere conservar essa atitude indiferente e a hierarquia dos deuses, na esperança de fazer sentir sua superioridade sobre o resto dos mortais. O truque teria funcionado se não fosse por aqueles sapatos. As sandálias sem salto, de couro barato e ponta para cima, confirmaram o pressentimento que tomou meu espírito durante aquele mês de espera.

Os chinelos de Aladin ¿ para chamá-los corretamente ¿ inexplicáveis em toda a cena, me permitiram tomar a distância necessária para compreender que o homem era um desequilibrado. E que, como acontece com a maioria dos psicopatas megalomaníacos, conseguiu espalhar sua doença para toda uma sociedade.

Meia hora antes, uma caravana de três carros oficiais chegara para me buscar no luxuoso hotel onde me haviam hospedado. Sem dizer uma palavra, levaram-me a toda velocidade pelas ruas desertas da cidade até o quartel de Bab al-Azizya, o mesmo que quatro anos depois seria bombardeado por Ronald Reagan.

Terminei em uma tenda beduína no pátio do quartel. O Guia Supremo da Jamahiriya Árabe Popular e Socialista Líbia estava sentado numa poltrona, usando um uniforme de piloto cáqui e com um turbante beduíno na cabeça. E para que a cena fosse realmente imponente, seus assistentes haviam colocado a poltrona sobre um montinho de areia, de cerca de 50cm de altura, coberto com tapetes.

Justo em frente, estava o pufe. E eu me vi observando os chinelos gastos, privada de um ataque de risos pelo absurdo da situação.

¿Os cavalos estão bem. Guardo-os em Sirta¿, respondeu, desta vez, em inglês, aludindo a sua cidade natal.

Na verdade, tudo começou por causa desses animais. Através de uma boa fonte, soube que uma unidade de veterinária do Exército argentino preparava dois cavalos que deviam seguir para a Líbia no mesmo avião que trouxe um pequeno arsenal do país à ditadura militar. Dias depois, os líbios me convidaram para entrevistar o Guia Supremo. Em 14 de novembro de 1982, eu estava em Trípoli. Um mês depois, com o passaporte nas mãos de sabe-se quem, continuava esperando que se dignasse a me receber.

Durante todo esse período, tive tempo para tomar o pulso do sistema, um dos mais fechados, absurdos e caóticos do planeta. Em 1982, a Líbia era um verdadeiro Estado policial, onde todo mundo espionava todo mundo, e cada um dos líbios dependia do regime para sobreviver. Os EUA tinham declarado um embargo ao petróleo. Estava proibido o turismo, e o comércio e a indústria eram praticamente inexistentes. Ninguém podia sair nem entrar no país sem ser autorizado pelo regime.

Nessa primeira entrevista, o Guia Supremo me deu uma lição sobre a necessidade de acabar com o imperialismo e impor a revolução popular e socialista em todos os cantos do planeta.

¿Mas o senhor deve saber que o regime militar argentino não é exatamente um admirador do socialismo, e menos ainda dos governos populares¿, destaquei.

¿São patriotas que fazem a guerra contra o império e são profundamente antijudeus. E agora fale-me sobre seu país¿, respondeu.

Era sempre assim em cada uma de minhas visitas. Kadafi não escuta: discursa pedantemente. A resposta me permitiu compreender rapidamente por que esse regime financiou durante 40 anos todos os movimentos de extrema-esquerda nos cinco continentes, mas também todas as extremas-direitas do mundo: os primeiros por revolucionários que são; os segundos, por serem antijudeus. E todos por serem antiamericanos. Os extremos sempre terminam se tocando.

Tive as provas de tudo isso em abril de 1983, quando cheguei pela segunda vez, convidada para o Congresso Internacional do Livro Verde, em Benghazi. O Guia me recebeu no quartel de al-Foudheil Bou, incendiado e saqueado na semana passada por ser considerado símbolo do autoritarismo. Estava vestido de czar. Com uma longa túnica branca enfeitada por uma faixa dourada. Sobre os ombros, um xale do mesmo material e sandálias nos pés.

¿Como estou?¿, perguntou, em inglês, quando entrei na biblioteca de sua casa, no centro do quartel.

As bibliotecas de Kadafi eram mesmo impressionantes: estantes e estantes cheias de livros em espaços amplos. Mas as prateleiras de madeira clara eram ocupadas por edições diferentes de uma única obra: seu famoso Livro Verde. Então, tive a sensação de que seu estado mental havia piorado.

Minha terceira e última viagem foi em abril de 1985, quando fui entrevistá-lo para uma TV francesa. Num marco de tensão com os países europeus, Kadafi foi breve. A única coisa que lhe interessava era lembrar ao Reino Unido que na Líbia havia um número considerável de cidadãos britânicos que podiam ficar ¿retidos indefinidamente¿. Com razão, os franceses não exibiram o material, e eu decidi não voltar à Líbia.

Anos mais tarde, uma foto daquela estada em Benghazi me deu razão. Sentado perto de mim, ouvindo o Guia Supremo, aparece o guarda-costas que o regime me designou em cada uma das minhas viagens. Era Abdelbaset Ali Mohmed al-Megrahi, o homem que cometeu o atentado de Lockerbie.

LUISA CORRADINI é correspondente do ¿La Nación¿, do Grupo de Diários América, em Paris